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ilustração: Livronews / Yellow / Adobe Firefly

Artigo – José Castilho: A indignidade como política pública

O último ciclo histórico de política pública de formação de leitores/as na pesquisa Retratos da Leitura 6

Por José Castilho*

Em 2015, quando o grupo de analistas examinava os números da Retratos da Leitura 5 e constatava que o Brasil havia agregado mais 16,5 milhões de leitores/as ao seu ainda insuficiente percentual de 56% da população que exercia seu direito à leitura, o sentimento era de satisfação mas também de incredulidade, forçando uma revisão dos dados para comprová-los, o que foi feito e comprovado. 

Nessa análise de 2024, outro sentimento prevaleceu, o da profunda indignação. Além dos números da Retratos 6, ecoaram os números da Retratos 5, de 2019, que já apontavam a queda expressiva do percentual de leitores/as. Estamos claramente em rota hemorrágica de descenso nos últimos 8 anos.

Meu texto analítico sobre o quadriênio 2015-2019, e da perda de 4,6 milhões de leitores/as está no livro da quinta pesquisa do IPL e agora, ao analisar mais uma sangria do direito à leitura no Brasil, com a perda de 6,7 milhões de leitores/as no quadriênio 2019-2022, mantenho a mesma linha de raciocínio: se há diversas causas que podem explicar o aumento ou a queda do número de leitores/as no Brasil, uma delas se destaca, seja pela ausência, seja pela ação deliberada em destruir os caminhos que formam leitores/as. E essa causa intitula-se Políticas Públicas de Livro, Leitura, Literatura e Bibliotecas. 

As várias razões que atuam em favor da não leitura em todo o planeta, como a nefasta desumanização imposta pelo mundo neoliberal simbolizado nas Big Techs que instituiu o comando das telas na gerência das nossas vidas virtualizando radicalmente o tempo e o espaço, não superam a ausência ou a má política pública porque ela é estruturante e é a única que consegue trabalhar em escala de um país continente para proporcionar (ou retirar) o direito à leitura e à escrita.

Em 2015 eu não me surpreendi com o resultado positivo da pesquisa, assim como agora tampouco fiquei surpreso. O período governamental que antecedeu o resultado positivo e os dois períodos que antecederam a sucessão de negativos foram completamente distintos ao trabalharem com a política de formação de leitores/as. 

De 2005 até 2015 houve um esforço inicial dos governos Lula e Dilma, principalmente de 2006 a 2010, para se formular um diagnóstico dos problemas e, sobre esses dados, formular um planejamento que abarcasse cultura e educação, estado e sociedade, num esforço de criação de uma Política de Estado que reconhecesse direitos e estabelecesse objetivos estratégicos para tirar o país da obscuridade de não saber ler e escrever plenamente em um tempo histórico em que esse instrumento é imprescindível para o exercício pleno da cidadania e do desenvolvimento sustentável.

De 2016 até 2022 tivemos não apenas o afrouxamento dos programas construídos no MinC e no MEC de incentivo à leitura, mas a intenção deliberada de aniquilamento deles. À desidratação do Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL no governo Temer somou-se à sua destruição no governo Bolsonaro e, com isso, mais uma vez, toda a responsabilidade de formar leitores/as no Brasil ficou nas mãos da sociedade civil. 

Com o ex-presidente agora inelegível tivemos não apenas inação, mas intencionalidade ativa em destruir e desestimular objetivamente as instituições públicas e as organizações sociais que ainda cuidavam de fomentar a leitura. A formação de leitores/as inseriu-se na necropolítica regressiva de negação de direitos sociais, da democracia e a escancarada intenção de reforçar o ideal de um estado violento e autoritário, talvez saudoso do estado teocrático medieval com seu soberano absoluto ungido por Deus. 

Para agregar dados objetivos a esses comentários, destaco alguns resultados da Retratos da Leitura 6. 

Todos os resultados desse período de 2020 a 2023 são negativos para o livro, a leitura, a literatura e as bibliotecas. Ao contrário de crescer, o Brasil decresceu. Se em 2019 apurou-se uma perda de 4,6 milhões de leitores/as, o período 2020-2023 aponta a perda de 6,7 milhões. Se quisermos fazer um exercício comparativo e isolarmos o número de acréscimo de novos leitores/as demonstrado em 2015, 16,5 milhões, subtrairemos deste número 11,3 milhões de leitores/as na somatória dos últimos 8 anos.

Os números são claros, dentro da metodologia da Retratos e no conceito estabelecido do que considera leitor e não leitor: 

  • ⁠De 2011 a 2015 passamos de 50% de leitores/as em relação à população brasileira para 56%, resultando em acréscimo de 16,5 milhões de pessoas (88,2 milhões em 2011 para 104,7 milhões em 2015); 
  • ⁠De 2015 a 2019 os 56% de 2015 caíram para 52%, ou decréscimo de 4,6 milhões de leitores/as em 2019 (de 104,7 para 100,1 milhões); 
  • ⁠De 2019 a 2024 os 52% de 2019 caíram para 47%, ou novo decréscimo de 6,7 milhões em 2024 (de 100,1 para 93,4 milhões). 

Outros dados, entre muitos, são igualmente preocupantes porque atingem pontos nevrálgicos da formação de leitores: 

  • ⁠Queda acentuada da leitura nos alunos do Fundamental I, período crucial para a alfabetização e para o desenvolvimento do gosto pela leitura e escrita: em 2019 a porcentagem de leitores/as deste segmento era de 49%, ou 21,1 milhões de estudantes leitores; em 2024 o índice caiu para 40% ou 13,7 milhões. 
  • Queda do número de leitores da faixa etária de 5-10 anos, igualmente fundamental para o desenvolvimento de leitores/as: dos 71% em 2019 para 62% em 2024, perda de 9 pontos percentuais. Na mesma faixa de idade, os não leitores passaram de 29% para 38%. 
  • ⁠Queda de leitores/as em todas as regiões do país, à exceção do Centro Oeste que cresceu 1% percentual. O Norte perdeu 15 pontos percentuais, o Nordeste, o Sudeste e o Sul 5 pontos percentuais cada um.

Essa amostra de resultados indignantes se multiplica nos outros itens da pesquisa e são sinais de alerta para evitarmos um desastre maior nos próximos 4 anos que se refletirão na Retratos 7 de 2028. 

Urge reverter essa política da indignidade e acelerar o cumprimento da Lei 13.696/2018, da Política Nacional de Leitura e Escrita/PNLE, que determina Planos Nacionais de Livro e Leitura/PNLL decenais. Já não nos falta o marco legal que aponta o caminho para a democratização do acesso, principalmente pelas bibliotecas de acesso público, a formação de mediadores culturais, a valorização simbólica do livro e da leitura e o apoio ao escritor, ao editor e às livrarias.

Se o direito à leitura é a chave de todos os outros direitos no mundo contemporâneo, é preciso dizer que um povo que lê com proficiência tem melhores instrumentos para resistir à servidão e aos muitos discursos de engano do mundo contemporâneo. Trata-se de questão crucial para um país que se pretende democrático.

É preciso lembrar que nos tempos medievais apenas os ungidos pelo poder real, eclesiástico ou patriarcal podiam ler aos outros. Somente no surgimento da Modernidade, que nos trouxe novas tecnologias com Gutenberg, o Estado Moderno e os primeiros contrapesos da vida democrática, que as utopias da inclusão e da equidade social elegeram o livro e a leitura como instrumento essenciais à vida em sociedade num estágio civilizatório mais avançado.

Desde então, períodos de crescimentos se alternam aos regressivos, regulados por períodos históricos onde livros são odiados e jogados às fogueiras ou, inversamente, são incentivados e formam esteios civilizatórios para uma humanidade que anseia caminhar para um convívio melhor e mais equânime.

Por fim e em meio a tantos motivos fundamentais à vida para incentivarmos a formação de leitores/as, lembro nossa conjuntura imediata, esta em que vivemos sob a predominância das fake news como prática política e a urgência de superarmos esse patamar odioso que gera violência e instabilidade permanentes. Mais uma vez, e à propósito, cito a Profa. Eliana Yunes:

Leitura não é somente alfabetização, é visão de mundo. Quem lê, pensa. E quem pensa, não se cala. É urgente, portanto, incentivar a leitura, não apenas em sua dimensão educativa, mas também em sua dimensão social e cultural. A leitura é condição para a aprendizagem. Sem esta e seus jogos de sentido, o homem não se converte em sujeito de sua história.”

*José Castilho é Doutor em Filosofia pela USP e professor da UNESP. Autor, editor, gestor público. Atua na www.jcastilhoconsultoria.com.br e é consultor internacional. Ex-presidente da Editora Unesp, foi Secretário Executivo do PNLL, Diretor da BMA-SP e Presidente da ABEU e EULAC. Seu nome apelida a Lei 13696/2018 da PNLE.

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