Por Hubert Alquéres
O Prêmio Jabuti se consolidou como um marco da literatura brasileira. A cada edição, revela novos escritores e consagra obras que entram para a história de nossa cultura. É uma prova viva da diversidade cultural de nosso povo, projetando, em muitos momentos, nossa literatura para o mundo. Assim tem sido desde sua primeira edição, quando a grande obra de Jorge Amado, Gabriela, Cravo e Canela, foi vencedora na categoria romance. Chegamos à 66ª edição com o mesmo espírito de inovação, criatividade e determinação, além de um olhar otimista sobre o potencial e a riqueza de nossa produção literária.
A história do prêmio, instituído pela Câmara Brasileira do Livro (CBL), é também a de celebrar obras que tocam profundamente o coração dos brasileiros. Neste exato momento, o país se emociona com a história de Eunice Paiva, viúva do deputado Rubens Paiva, assassinado nos porões do regime militar. Os cinemas estão lotados para assistir a Ainda Estou Aqui. O filme foi baseado no livro do escritor Marcelo Rubens Paiva, cuja obra foi premiada no Jabuti. Esse caso mostra como a premiação tem a sensibilidade de reconhecer livros que transcendem as páginas e ganham vida em outras formas artísticas, reforçando seu papel como termômetro da relevância cultural de nossa literatura.
Cada edição é também um momento de reafirmar valores e refletir sobre os desafios que nos cercam. Vivemos uma situação paradoxal. De um lado, temos um mercado editorial e um parque produtivo extremamente diversificados e ricos. Como prova, a edição deste ano demonstra que o Brasil continua produzindo obras literárias de excelência nas diversas categorias do prêmio.
Por outro lado, assistimos, com preocupação, à mudança nos hábitos dos brasileiros quanto ao uso do tempo livre. As intensas transformações em curso impactam esses hábitos, e os livros enfrentam concorrentes poderosos, como as redes sociais e os jogos eletrônicos.
A recente pesquisa Retratos da Leitura no Brasil, realizada pelo Instituto Pró-Livro, revelou que o país perdeu 6,7 milhões de leitores nos últimos cinco anos. Mais grave: a maioria dos brasileiros, 53% do total, não leu um só livro ou uma parte de um livro. Esse cenário afeta especialmente a juventude. Segundo a coordenadora da pesquisa, Zoara Failla, “está crescendo o percentual de jovens que dizem estar nos games, assistindo a vídeos”.
Esse não é um problema apenas do mundo literário e do mercado editorial. É uma questão nacional que requer políticas públicas de incentivo à leitura. Jovens que leem pouco se tornarão futuros cidadãos com baixo conhecimento da realidade que os cerca, despreparados para se inserir na sociedade e no mercado de trabalho. Um país de pouca leitura é uma nação que não valoriza sua memória e a criatividade do próprio povo.
O Jabuti tem, em seu DNA, a liberdade de expressão como um valor inegociável. É impossível a literatura se desenvolver plenamente em meio à censura e à limitação do livre circular das ideias. Esse valor inarredável nos leva a lamentar e manifestar nossa preocupação com uma série de episódios que indicam que a censura voltou a pairar sobre a literatura brasileira como uma espada de Dâmocles.
No início deste ano, o livro O Avesso da Pele, de Jefferson Tenório, vencedor do Jabuti em 2021, foi alvo de censura em dois estados e recolhido de escolas públicas. Não se trata de um episódio isolado. Mais recentemente, o ministro Flávio Dino, do Supremo Tribunal Federal (STF), censurou quatro obras jurídicas e determinou sua destruição, sob o pretexto de conterem conteúdo homofóbico e misógino.
Os fins não justificam os meios. Nada, absolutamente nada, justifica a censura. A destruição de livros é prática de sociedades distópicas e estados autoritários. A literatura já descreveu o que isso representa na grande obra Fahrenheit 451, de Ray Bradbury. Os tempos das fogueiras da Santa Inquisição e do bombeiro Guy Montag, o incinerador de livros, não podem retornar.
Pasmem: em pleno século XXI e quarenta anos após o fim da ditadura, a censura de Dona Solange voltou a dar o ar de sua graça. A Secretaria da Educação de Rondônia censurou, sob a alegação de “conteúdos inadequados”, livros de Machado de Assis, Carlos Heitor Cony, Euclides da Cunha, Franz Kafka e Edgar Allan Poe.
A censura, venha de onde vier e seja qual for o pretexto, é incompatível com o Estado Democrático de Direito, pois fere uma das cláusulas pétreas de nossa Constituição-Cidadã.
O Jabuti é um momento de alegria e celebração, mas também de homenagear grandes figuras que nos deixaram em 2024 e cuja contribuição para o mundo das letras continuará entre nós. Por isso, lembramos Antônio Cicero, membro da Academia Brasileira de Letras (ABL), poeta, filósofo e letrista cuja obra, marcada por sensibilidade e profundidade, enriqueceu tanto a literatura quanto a música brasileira. Suas palavras e ideias continuarão ecoando, nos inspirando e provocando a pensar.
Em um mundo marcado por avanços tecnológicos, mudanças climáticas e a busca por justiça social, a literatura serve como um elo entre passado, presente e futuro. O Jabuti, como seu próprio nome sugere – inspirado no animal descrito por José de Alencar como símbolo de gravidade, prudência e sabedoria – reflete essa conexão entre raízes culturais e inovação. Assim, o prêmio segue como um patrimônio cultural do Brasil, renovando-se a cada ano, sem perder sua essência de celebrar o que há de melhor na nossa produção literária e na alma dos brasileiros.
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Hubert Alquéres é o Curador do Prêmio Jabuti e vice-presidente da Câmara Brasileira do Livro.