Um bate-papo com Dani Costa Russo (@danicostarusso). A escritora lança o livro “Cama Rainha”, pelo selo Auroras (@seloauroras), no dia 14 de Junho de 2024. Na pauta da conversa, o modo de trabalho da autora, e como construir uma obra literária e audiovisual a partir da escrita de si.
Livronews Sejam muito bem-vindas e bem-vindos a mais uma Live Livronews. Eu sou o Fábio Lucas e hoje vou conversar com a Dani Costa Russo, autora e editora. Autora do livro Cama Rainha, que está sendo lançado amanhã. Ela acabou de chegar. Coisa boa. Que saudade, que saudade.
Dani Costa Russo Que saudade. A gente se viu outro dia aqui em São Paulo. Outro dia não, faz um século. Ah, um século. Não tem nem mês. Mas sempre tenho saudade de você, Fábio.
Livronews Dani Costa Russo está lançando o livro Cama Rainha, a lenda finalmente chegou.
Dani Costa Russo Ah, esse livro deu muito o que falar, né? Enrolou demais, fiz tanta campanha…
Livronews E ainda mais com um filme atrelado, imagina. Todo mundo na expectativa.
Dani Costa Russo Por isso que eu não tinha lançado ele antes. Porque o livro já tem quase um ano, que foi lançado. Levei pra um monte de eventos. Levei pra Bienal do Rio, levei pra Flip, levei pra várias feiras. Mas não tinha feito um lançamento oficial, né? Aquela coisa ali de dizer, olha, é o lançamento do Cama Rainha, eu não tinha feito ainda porque eu estava esperando o filme. E o filme já estava pronto também. Tudo isso foi um grande desgaste. Fazer o livro, fazer o filme… Depois, quando eu fiz o livro, eu fiz pensando na Bienal do Rio. Aí eu já emendei na Bienal do Rio e eu inventei de participar de um estande. E, nossa Senhora, que experiência. Dez dias de loucura. Então, assim, fiquei cansada demais pra fazer festa. E aí a Mariana Perno, ela é da Casa Urânia. A Mariana Perno é uma autora, do Auroras. Ela falou, nós vamos fazer sim. Nós vamos fazer em junho. Então é isso, agora vai. Vai ser amanhã.
Livronews Ainda bem, parabéns pra ela, que conseguiu lhe puxar. Vamos começar, então, por uma questão de ordem. O livro tava pronto, mas não tava. Faltava o filme. Por quê? Que inventação foi essa?
Dani Costa Russo Bom, eu sou extremamente inquieta. Não é a primeira vez que eu uso audiovisual associado a uma obra minha. Eu também fiz isso em Beijos no Chão. Só que não foi um curta-metragem, mas foram vídeos também. Teve um diretor de cinema, enfim. E o audiovisual me deslumbra, né? Me ver numa cena, uma cena que eu escrevi, me deixa ainda mais apaixonada pela mulher que eu me tornei. Porque quando eu comecei na minha carreira de escritora, eu fui tão rechaçada e eu fui tão botada de lado, e tanta gente me desanimou e me disse, “não faça isso”, que quando eu reverti essa situação, e além de escritora eu me tornei uma editora, eu me dei o direito de fazer o que eu quiser. Eu vou fazer um livro de escrita de si, que é um tipo de escrita que, aqui no Brasil, a gente não tem uma aceitação unânime, a gente sabe disso. É uma coisa que tá crescendo ainda no Brasil e no mundo. Eu vou fazer no meu cenário literário, vou fazer do jeito que eu quiser, eu vou editar como eu achar melhor, porque eu não tinha quem pudesse editar para mim. E eu vou fazer um filme também. É claro que não foi uma ideia que partiu do nada. A Carola Lobo, que é uma autora Auroras, assim que ela entrou para o meu catálogo, que eu comecei a editar a obra dela, eu fui saber mais da Carola. Eu acabo tendo um contato bastante íntimo com as minhas autoras e a gente trabalha muito juntas, não só a literatura, como o que vier. A gente acaba fazendo grandes parcerias. Eu tenho várias autoras assim. Hoje no selo são 41, né? Então com muitas eu tenho uma atividade constante, não só com a literatura. E a Carola, ela tem uma produtora de cinema chamada Flor Filmes. É uma produtora que, inicialmente, foi criada para que mães cineastas trabalhassem e criassem juntas. Agora são mulheres, não só mães. E ela tinha muita vontade de fazer a adaptação de Beijos no Chão, que foi o meu romance de estreia, que é uma autoficção. E eu achei interessante e realmente combina muito com o catálogo da produtora dela, porque Beijos no Chão é um livro de muita violência, muito sangue, e ela traz esse tipo de filme, né? Ela tem filmes premiados, inclusive, nesse tipo de tema, na Flor Filmes. Mas eu falei pra ela, olha, eu não aguento mais esse livro. Eu não aguento mais essa história do Beijos no Chão. E eu não queria trabalhar essa violência tuda de novo, eu gostaria de trabalhar outra coisa. Inclusive pensando no catálogo Auroras.
Livronews Inclusive pelo custo emocional, a autoficção tem isso também, né?
Dani Costa Russo Sim. E aí eu falei com ela. Eu tenho um poema chamado Cama Rainha. Eu gosto muito desse poema, é um poema com uns 560 versos, mais ou menos, acho. Não dá pra constituir um livro só ele, né? Ele sozinho não dá um livro. Não sei o que eu vou fazer com esse poema, mas eu tenho muita vontade de trabalhar. Quem sabe a gente não faz um audiovisual com ele e, de repente, a gente pode usar em oficinas e tal. Porque a gente é assim, né? A gente consegue fazer um monte de coisa com aquilo que a gente produz. A gente sai levando por aí, ensinando, aprendendo, enfim, apresentando pras pessoas. E aí ela falou, é, a gente pode ver isso. Ao mesmo tempo que Larissa Brasil, que todos sabem que é uma grande amiga minha, escritora fantástica, virou pra mim e falou assim, vamos pra Bienal do Rio, vamos levar livro novo? E eu não tinha nada. E eu falei com ela, realmente, eu preciso ter um livro meu no meu catálogo. Porque as pessoas perguntavam, né, “e aí, você não vai publicar nada seu no seu catálogo?” Eu meio que deixei minha carreira de escritora de lado pra me dedicar à carreira de editora, mas eu sabia, como editora, que era importante publicar no meu próprio selo. E aí, eu falei, quer saber? Eu acho que eu vou fazer Cama Rainha, mas eu não sabia que Cama Rainha ia ter trecho de diário. Porque eu realmente imaginava que fosse algo que não interessasse a ninguém. Eu não achava que eu conseguisse tirar dali uma narrativa toda, só com trecho de diário. Eu achava que talvez, você se inspirar naquilo que você escreveu no seu diário, ok. Mas você pegar o que tá ali e só colocar no livro, eu não achei que fosse possível. Pelo menos não pra mim. Porém, eu fui pra Flip de 2022 e eu assisti a Annie Ernaux palestrando e eu fiquei completamente apaixonada com a convicção dela. Ela nunca teve uma insegurança a respeito do que ela fazia, da escrita toda inspirada no que ela vivia, na vivência dela. Ela teve toda uma carreira fundamentada nisso. E ganhou o Nobel, assim. Eu realmente… Parecia que era a resposta que eu precisava, sabe? Então, eu juntei tudo isso. Essa vontade de ter um livro pro catálogo. O Cama Rainha, que é o poema, que tá na segunda parte do livro. E eu queria entregar pra Carola, pra ela fazer um audiovisual. Eu não pensava em participar desse filme. Eu só ia dizer, pode ficar com o poema, faça o que você quiser. Mas aí acabou se tornando, realmente, curta-metragem do livro. E aí, eu, inspirada na Annie Ernaux, eu falei, tá bom, então eu vou… Eu vou olhar os meus diários e eu vou ver o que eu tenho aqui. E eu fiquei bastante impressionada com a narrativa. Assim, eram vários diários e é óbvio que a narrativa, ela não tava linear. Teve todo um garimpo ali, um garimpo bem intenso. Uma coisa muito cirúrgica, pra narrativa fazer sentido. E eu peguei esses trechos e fiquei brincando de tetris ali, até formar aquilo que eu acho que cheguei numa solução. Eu não modifiquei o que tava nos diários, mas eu tive que mudar a ordem das coisas. Porque senão não ia ficar entendido, não ia ser possível. Duas leitoras beta me ajudaram, me dizendo, olha, entendi, não entendi. Porque a personagem sou eu. O personagem é o gajo lá, o par romântico. Não é um romance, não é uma prosa, né? Eu não tenho ali linhas suficientes pra explicar toda uma história, todo um amor vivido, pra explicar quem eu sou e quem ele é. Mas isso tinha que aparecer de alguma maneira. Então, com a ajuda delas, eu fui fazendo a ordem e fui tirando coisas e fui trocando por outras. Abria meus diários, eu falava, tá, mas quais acontecimentos mais eu posso incluir, então? Pra poder contar essa história. E aí, assim, fui fazendo. E aí, quando veio a ideia do filme, eu fiz realmente o Cama Rainha, Carola, vou fazer este livro, e vai ser assim, assim, assado. Só que a primeira parte, não tem como misturar com a segunda, pra poder gente fazer um filme. Não ia ser um curta, ia ser um longa. E a ideia não é essa. Vamos fazer só a segunda parte mesmo. Então, aí a gente fechou o que ia fazer, ela acionou a equipe dela e aí a gente criou o roteiro, que, na real, não ia ser como ele é. Você viu o filme, né? Ele não ia ser toda a segunda parte do livro, ele ia ser parte. Mas aí chegamos à conclusão de que não ia ficar legal. Não ficou, na real, e aí a gente voltou atrás e reeditou.
Livronews Antes da gente passar pro filme, vamos voltar pros diários virando livro. Qual foi o período dos diários que você pegou? Chegou a ser mais de um ano? Porque eu imagino a trabalheira que deu pra você, primeiro, reler tudo que você tinha sentido, não só o que você tinha escrito, e aí, mergulhar nesse material, pra escolher algumas coisas. É difícil até emocionalmente, né, Dani?
Dani Costa Russo Foi, foi sim. E foi bom, porque eu já tinha, assim… Eu terminei esse relacionamento na pandemia e tudo na pandemia foi mais doloroso, né? Então, quando você tem que sofrer só dentro de casa, é mais difícil. Se eu pudesse sofrer num samba, num forró, numa praia, tava ótimo. Mas tive que sofrer aqui na minha casa, nos meus 100 metros quadrados. Então, foi muito difícil. Quando eu comecei a reler os diários, primeiro que eu fiquei muito feliz de ver que tinha sido uma relação sensacional, muito saudável, com um homem incrível que eu tive a sorte de conhecer. Fiquei muito feliz, teve esse aspecto de reviver todo um relacionamento pelos diários, de reviver as coisas cotidianas, reviver a minha maternidade, reviver as minhas dúvidas profissionais, porque foi no exato momento em que eu deixei o jornalismo, tirei um ano sabático pra estudar edição, porque eu queria ser editora. E aí, todas as minhas dúvidas, aquela coisa de, nossa, eu nunca vou conseguir editar um livro, eu nunca vou conseguir trabalhar com um livro, nunca ninguém vai me contratar, eu nunca vou… Ah, assim, eu me senti até um pouco ingênua de ter sido tão insegura, em certas partes do diário, a respeito de vários aspectos da minha vida.
Livronews Isso é muito, né? Ao reler algumas coisas que você escreve pra você mesmo, depois, você acha algumas coisas até ridículas, porque você tá envolvido ali naquele momento por outra coisa, né?
Dani Costa Russo Uhum. Bom, então, os diários são de 2018 a 2020. Aí são alguns. O garimpo, primeiro, foi muito aleatório, foi pelo que eu achava que era bonito. Depois eu vi que não, que tinha que contar uma história. Eu tinha que contar uma história, tinha que ser o começo, o meio e o fim. E aí, eu entendi que eu tinha que dividi-lo. Então, a primeira parte tem o começo do relacionamento, todas as questões que eu considero serem da mulher contemporânea, hoje… Como você concilia a maternidade com o relacionamento, como você concilia a sua profissão com a casa, como você planeja seus sonhos, como você coloca em prática tudo aquilo que você planejou, tem toda essa questão aí. Tem muito da minha personalidade, tem gente que morreu de rir e falou, “Ah, eu nem imaginava que você era assim”. Pois é, sou. Eu faço muita pirraça também. E aí, o fim da primeira parte é quando vai chegando aquele momento em que a pandemia aparece, tem as incertezas todas. Aí, na segunda parte, eu até falo, o livro agora pode começar, porque aí, sim, vem o poema Cama Rainha, que tem as fases do luto da separação. Então, eu não sei dizer quantas vezes eu mexi na ordem dos trechos, eu sei que foram muitas. Então, para quem está fazendo algo nesse sentido, de explorar os próprios diários para escrever, não há problema nenhum em você se editar, se editar bastante, se editar muito. Inclusive, é até uma coisa que o André Argolo me perguntou. “Tem muitas frases que eu considero que são muito de efeito. Você fez trocas em algum momento?” Eu fiz trocas de palavras, sim. Em alguns momentos eu troquei palavras, não é 100% o que está no diário, porque podia correr o risco de ninguém entender. Precisava ter um vocabulário que fosse algo que as pessoas pudessem entender. Tinha muita coisa que era só minha. E aí foi isso. Foi investigar, garimpar e ir testando, testando, testando a ordem de tudo. Até eu ler por completo, e outras pessoas também, e daí eu ter o feedback de “agora sim, a gente entende”. Não estou dizendo que qualquer um que pegar o livro vai falar, “nossa, entendi tudo”. São trechos de diários. Também não é para sair dando muita explicação. Mas são trechos de diários, e aí tem uma coisa que uma leitora aberta falou, que foi o seguinte. Tem um momento em que eu estou escrevendo, falando com o diário, aquela coisa do “ele”, eu estou ali na primeira pessoa falando com o diário, e tem momentos em que eu estou falando dele e tem momentos em que eu estou falando para ele. E aí a leitora falou, “mas isso causa uma confusão, e tal”. Aí eu fiquei pensando se eu tiraria todos os trechos em que eu falava com ele. E eu percebi que não. Porque é assim que eu escrevo. Quando eu estou com vontade de conversar com alguém e isso não acontece, eu vou para o diário, e essa conversa acontece no diário. Então eu deixei, e aí eu achei que ficou bem autêntico. Eu não mudei essa estratégia minha de escrita que, para falar a verdade, eu nunca nem tinha reparado. Quando ela chamou atenção para isso, eu falei nossa, é verdade. Mas aí eu não mudei. Deixei como estava.
Livronews E ficou ótimo. Tem gente que, inclusive, escreve até mais. Não é nem só um pedaço do diário, mas escreve carta para alguém e nem chega a entregar. Queria só escrever aquilo.
Dani Costa Russo Exatamente. Tinha algumas cartas no diário, e eu não lembro se eu peguei algum trecho de alguma delas, mas eu não coloquei nenhuma inteira, realmente.
Livronews São dois anos de diário, mas em quanto tempo você conseguiu fazer a edição que foi para a leitura crítica, por exemplo?
Dani Costa Russo Aí é que tá. Eu não sou favorável de fazer livro no susto, viu gente? Não sou. Mas eu tive que fazer porque eu queria levar para a Bienal. Então… Eu tenho um cronograma de edições do Auroras, e eu estava fazendo a edição do Bestiárias da Silvia B. E aí, se eu engrenasse em outra, que era inclusive o da Carola, na sequência, acabou. Eu não ia mais parar. Eu ia passar o ano editando e não ia fazer meu livro. Então eu dei uma pausa nas edições dos livros do Auroras, porque o Cama Rainha é pelo Auroras. Na verdade eu dei uma pausa na edição dos outros livros. E aí eu fiquei nessa construção dos trechos dos diários e da segunda parte entre, depois do carnaval, março, né? Entre março e junho. Eu fiquei uns três meses construindo o livro e mais ou menos um mês, em que as leitoras me deram feedback. Eu ainda estava construindo, na verdade, quando elas me falaram. E aí, assim que elas me passaram o feedback, eu já fui preparando tudo para o livro e para o projeto gráfico, mesmo. E aí eu podia editar na prova, e foi a pior coisa do mundo, eu nunca mais vou fazer isso. Eu nunca mais vou me editar. Então, gente, Dani Costa Russo nunca foi editada nessa vida que não seja assim, né? Pela própria pessoa. Então o próximo livro meu, que é um romance que eu estou escrevendo, eu não vou fazer pelo Auroras. Eu não vou me editar.
Livronews Chega de auto-edição, né?
Dani Costa Russo Chega, porque Verdes no Chão também foi assim, né? Acabou, chega.
Livronews Dani, o que é que conecta as duas partes, fora essas ligações factuais, emotivas, do ponto de vista do texto? Para quem está pensando, por exemplo, em um projeto semelhante? “Ah, gostei do modelo de Dani. Vou fazer também.”
Dani Costa Russo Bom, se eu soubesse fazer uma conexão entre as duas partes, eu não tinha dividido em partes, né? Eu tive que dividir.
Livronews Mas elas conversam muito bem, né?
Dani Costa Russo Conversam muito bem. Só que foi um pesadelo me convencer disso, porque eu achava que tinha uma ruptura e depois dessa ruptura eu estava indo para o poema. Porque até o tom muda, né? Mas é claro que o tom muda. Na primeira parte do livro, eu estou dinâmica, eu estou ativa, eu estou viajando, eu estou numa expedição amorosa, eu estou amando, eu estou criando filhos, eu estou aí pelo mundo. Aí, na segunda parte eu estou em casa, no confinamento, muito melancólica, me arrastando pelos corredores. Então, assim, existe essa mudança no tom. E aí eu até me permiti, na segunda parte, que é o Cama Rainha, que ele praticamente entrasse como ele foi feito, mesmo. Eu fiz poucas mudanças, poucas mudanças. E eu tive que tomar a decisão de manter alguns tipos de rima que normalmente eu não quero, não gosto nas minhas obras, uma rima que eu diria até que cai muito para, ah, seria uma rima pobre? Não sei, poderia ser. Eu mantive. Eu não quis mudar muito desse poema, não. Eu quis deixar como ele estava, porque eu queria que ele tivesse uma sonoridade. Como se fosse um lamento, um lamento, um lamento. E, nos momentos que eu senti que essa sonoridade era quebrada, eu tentei fazer algo que tornasse a sonoridade contínua. E tentei colocar isso, inclusive, no filme, né, na maneira como eu narro. Bom, a conexão é toda essa. Eu acho que foi dos fatos mesmo. Uma coisa foi levando à outra. Eu tento, no poema, trazer alguns elementos dos acontecimentos da primeira parte, nas estrofes e tudo mais. Não sei se as pessoas que leram notaram isso, mas só de dizerem que teve uma fluidez, eu já fico aliviada. Porque, realmente, como justificar essa segunda parte? Como luto da separação? Porque a segunda parte toda fala dessa coisa, do luto da separação. E aí, lendo e relendo, as betas também ajudaram muito nisso, “Ah não, uma coisa está se conectando à outra”. E aí, mantive. Editar a primeira parte para a segunda nem foi problemático, mesmo. Acho que, quem estiver fazendo algo nesse sentido, é entender assim, a primeira narrativa, vamos supor que você queira mudar, colocar estilos diferentes, né, colocar trecho, colocar poema e tal. Elas estão conversando, elas estão falando da mesma coisa. Tem que falar da mesma coisa. Se tiver, peça para as pessoas que vão ler, que são as pessoas que vão ser as suas betas e tal, leitura crítica e tudo mais, apontar onde tem buraquinhos. Isso aconteceu na minha obra, as minhas leitoras apontaram isso. E aí, foi uma luz, porque, como eu falei, eu me editei, e se eu tivesse uma editora, ela ia me dizer, mas não tive. Então, e eu não fui uma editora boa para mim.
Livronews Por que não? Foi, claro que foi.
Dani Costa Russo Ah, não. Tem que parar, né? Chega uma hora que a gente tem que parar, e eu não parei. E outra coisa, preciso de um outro olhar, é preciso alguém para ver você. E eu já não conseguia mais me ver. E também tinha toda a questão emocional, uma história minha, a personagem sou eu. Chegou uma hora que eu não aguentava mais ser Dani Costa Russo, porque tudo tinha meu nome, tudo era eu. Era o meu diário, no meu livro, no meu cérebro literário, no meu filme, e eu como editora. Chegou uma hora que eu não aguentava mais. Mas, assim, foi bom, foi uma grande terapia.
Livronews Me diz uma coisa, já que você falou nisso aí, nesse detalhezinho interessante. Você se enxergou como personagem?
Dani Costa Russo Várias vezes. Várias vezes eu viajava e parecia que não era eu. Eu realmente estava considerando, ali, a construção daquela personagem. Porque, por mais que sejam trechos curtos de diário, dá pra entender que ali tem uma mulher e dá pra ver a construção dela. Dá pra ver um pouco da personalidade dela, dá pra entender as coisas que ela pensa, porque ela solta muito pensamento, aí… Tá vendo, já falou “ela”. Então, durante a edição, meio que eu fiquei nessas, porque a minha revisora, a Eduarda Rime, também foi uma grande parceira nesse momento. E aí a gente se pegava nessa coisa do “ela”, de estar falando da personagem, quando na verdade a personagem sou eu. Foi um grande exercício, entender que era um diário e era eu. Mas, sim, eu me distanciei várias vezes e pensei que estava lidando com uma personagem que não sou eu. E na hora de construir o filme, na hora de fazer o roteiro do filme, meio que foi isso. Acho que todo mundo esqueceu que era eu e ficou falando da personagem, porque eu tive que interpretar, né? Interpretar a Dani Costa Rosso, só que pra uma câmera. Muito complicado, isso.
Livronews Antes de chegar no filme, você considera, hoje, que o que você passou durante a pandemia… Primeiro que essa ruptura que você disse aí, essa mudança de uma parte pra outra do livro, pro leitor, ela fica muito coerente, porque tem uma pandemia no meio, né? Nada mais radical do que o que a gente viveu naquele momento, ali.
Dani Costa Russo É porque os trechos dos diários, eles vão naquela coisa, né? Eu vou falando da pandemia, de como as coisas estão, alguns comentários a respeito disso, aí vem aquele momento em que a interação com ele é por videochamada, e aí ela até brinca com isso, né? Ela tenta fazer algo divertido com isso, e tal. Ela, que no caso sou eu… Olha aí, já vai lá pra personagem. E aí, chega aquele momento em que tem a ruptura do relacionamento. A Dani Costa Russo começa o livro contando como conheceu o gajo, e aí, antes de chegar na segunda parte, ela conta, “acho que acabou, né?” E aí ela traz… Aí, pode reparar que é o mesmo tipo de trecho, é muito parecido com o trecho do começo, só que agora é com um fim. Em que se conta tudo que estava acerto. Como é que foi a última vez? Que foi 9 de março de 2020, a última vez. E aí começa a contar, e aí pronto. A gente já vai caminhando pra segunda parte, que é quando a Dani decreta, “agora o livro pode começar”. Tipo assim, aconteceu tudo isso aqui, agora o livro pode começar. Porque a ideia é que o livro fosse Cama Rainha. É que se eu tivesse tido fôlego, talvez eu fizesse um poema maior. Mas, na real, acho que nem se eu tivesse tido fôlego, porque eu acho que ele ficou redondo do jeito que ele está. Está ali contando as fases da separação, enfim. Eu acho que pôr mais coisa não ia ficar legal. Então parou ali e ficou ali. Dani ia remoer mais ainda, né? Tá bom, né? Exatamente. Tá bom.
Livronews E aí a ideia de expandir o texto pro audiovisual. Você já contou um pouco sobre isso, é que você sempre tem essa vontade de expandir isso, de trazer coisas novas pro texto, né? Como é que foi esse processo, para o Cama Rainha?
Dani Costa Russo Olha, como eu falei, o filme todinho, são 15 minutinhos, é um curta-metragem, ele se passa dentro do meu apartamento, que é onde eu estou agora, e a única personagem sou eu. Eu não falo nada no filme todo, mas tem uma narração, eu narro em off, com toda a segunda parte. Eu nem cheguei a mostrar o livro, né? O livro é esse, que é uma capa, que fui eu que pensei também. Essa é uma foto da viagem que eu fiz, da expedição amorosa que eu fiz e que tá nos trechos dos diários. É uma foto que deu errado, né?
Livronews E essa foto não é produzida não, é?
Dani Costa Russo Não, essa foto aqui é uma foto de viagem.
Livronews Ah, eu pensei que fosse produzida, tá tão diferente e bonita, eu pensei que fosse produzida para o Livro, olha só.
Dani Costa Russo Essa foto foi feita em 2019, lá em Portugal, quando eu fui lá, conhecer a família do gajo. E aí, quando eu fui fazer a foto, tampou meu rosto. Aí ele falou, “ih mozão, deu errado a foto.” E quando eu olhei, eu falei, não, não deu errado não. Eu tava com essa enxarpe, eu tenho várias, eu viajei com essa enxarpe, tenho várias fotos nessa viagem usando essa enxarpe para me proteger do vento. E aí eu pensei em usar, porque quando você olha assim, parece que é um lençol, um lençol no vento e tal. E como é “cama rainha”, parece que é um lençol, mas aí você vira e na verdade… Esse céu aqui, é o céu da foto original, tá? Esse aqui tava um dia nublado, não choveu, mas era um dia nublado. Era quase inverno. O que eu fiz de manipulação nessa foto, é retirar os pezinhos que tinham aqui, porque tinha umas pessoas atrás. Mas, tirando isso, todo o resto continuou, é a foto mesmo. Isso aqui é Cabo da Roca. E aí…
Livronews Pausa na narrativa. Tu nunca ia imaginar, no mundo, pra tu ver como são as coisas, né? Que essa foto que deu errado podia ser a capa de um livro dessa natureza.
Dani Costa Russo Nunca, nunca, nunca. Mas eu sempre tive enorme carinho por essa foto, assim, muito, muito, muito, muito. Mas eu não imaginava mesmo, assim, não. E aí acabou que a echarpe virou um elemento da narrativa, assim como os diários, né? Os diários, por si só, já eram elementos. Tem até uma foto na orelha que eu estou com a echarpe também, só que em outro lugar, mas é na mesma viagem. E acho que é em outro dia até, mas é na mesma viagem. E a echarpe virou um elemento, tanto que a equipe da Flor Filmes, a Carola e tal, pensou em explorar essa echarpe de alguma maneira, no filme. Mas como, se você está confinada? Você vai usar uma echarpe dentro do apartamento? Então elas se lembraram da obra Os Amantes, agora eu esqueci o nome do artista, é um artista belga, uma obra muito antiga, que é um casal se beijando, enrolados por uma echarpe branca. Então eu reproduzi essa imagem com o ator Vinícius Piedade, que está também no áudio, na primeira campanha de Cama Rainha, que também é de áudio visual. Reproduzi com ele o beijo com essa echarpe, e aí a echarpe aparece no filme nessa foto, o Vinícius não aparece no filme, mas aparece no filme, e acabou. Mas eu nunca ia imaginar que a minha echarpe… Está até lá no varal secando, porque ela vai lá para o lançamento amanhã. Lavei, tá bonitinha, vai para o lançamento, amanhã.
Livronews Falta falar da passagem do texto do livro para o filme. Aquilo da base que o filme tinha no livro. Mas aí a gente passa para aquela história, nem o filme é o livro, nem o livro é o filme. O que é que tem de mais e de menos, nisso aí? O que é que você acha que perdeu? O que é que ganhou?
Dani Costa Russo É… Antes de ler o livro, eu acho que perde a graça, porque é legal você imaginar. Mas isso é uma opinião minha. Eu acho que, ao ver o filme, você entende a melancolia, porque o filme é muito melancólico, é um vagar, é do quarto para a sala, da sala para a cozinha, é uma coisa muito doméstica, é aquilo. E é no ritmo que eu tô narrando.
Livronews Naquela sofrência…
Dani Costa Russo É. Na cama, rainha, que é a minha cama queen, né? Então é no ritmo que eu tô narrando. Agora, pra quem tá lendo o livro, vai no seu ritmo, vai no ritmo de leitura da pessoa. Eu acho que o filme acaba trazendo um complemento que é a imagem, porque tem isso também. O livro inteiro tem fotos. Fotos de viagem, que conversam com os trechos de diários, porque essas fotos estão nos diários. Mas a segunda parte não tem foto nenhuma, nem poderia ter, porque fazer foto de quê, gente? Eu tava no confinamento, eu não ia lugar algum. Eu tava em casa, eu devo ter feito foto, sei lá, do aniversário de um filho depois de outro, só nós três aqui, mas mais que isso, não. Então, a segunda parte vem seca, ela vem mesmo o poema em contraponto a toda a primeira parte.
Livronews Tem uma coisa que eu notei a respeito dessa diferença, que é sobre a questão do silêncio no filme, e do barulho, ou dos ruídos que você faz a gente imaginar no livro. Aquela coisa do pingo da goteira, do grito de raiva que você poderia ter dado ali num momento, que, inclusive, isso, no filme, fica bem interessante, porque você não tá falando nada, você não dá um pio no filme.
Dani Costa Russo Você não tem aqueles efeitos, né?
Livronews Pois é, e isso aqui é bacana, porque o seu silêncio é muito forte no filme, né? Já é diferente do livro.
Dani Costa Russo Exato. Foi muito bem pensado pela Bruna Matos, que é a diretora do filme. Ela, justamente, trouxe isso, ela falou, “olha, na segunda parte tem a narrativa, e tem vários sons que são os sons que vão preencher aquele silêncio. Então a gente vai trazer pro filme.” E a gente testou esses sons. Não foi de primeira, que achamos que ficou tudo ótimo. Não. A goteira, o barulho da vizinhança, todos os barulhos da casa, né? Tudo foi muito testado no filme, até chegar à fórmula perfeita, porque eles não poderiam atrapalhar o silêncio. O silêncio da personagem, que no caso sou eu, pela casa. E ai vem a minha narrativa, né? Eu tentei fazer assim. Tanto que a gente tem poucos momentos de música. A gente tem poucos momentos de música, pra que esse silêncio não seja quebrado.
Livronews É, isso. E músicas muito bem escolhidas, também, né? Uma coisa bem leve ali, bem… Não queria chamar atenção.
Dani Costa Russo Tinha uma música que era de uma música francesa, que a produtora Cris Valle achou. E ai a gente foi olhar a tradução e era sobre uma mulher, num apartamento, sofrendo por amor. Sensacional. Só que a gente não conseguiu achar quem vendesse os direitos autorais, em lugar nenhum do mundo. Falaram que tava no Canadá, e falaram que tava na França, e falaram que tava não sei aonde. Ninguém achou. Aí a gente teve que desistir, e foi pra uma clássica, mesmo. Mas tudo bem. O importante é que essa música surgisse, acho que são só dois momentos em que ela surge. Naqueles dois momentos e pronto, preencheu.
Livronews Como foi fazer esse filme com uma equipe de produção? Uma equipe de produção e a criatividade, por exemplo, da diretora, pensando junto com você, depois de tudo que você passou, aqueles momentos ali que lhe marcaram tanto, de repente isso virar uma massa pra você mexer artisticamente, e compartilhando isso com outras pessoas?
Dani Costa Russo Pois é. Curiosamente, eu estava tão feliz, queestava muito difícil trazer toda a tristeza, trazer toda a melancolia, e eu não sou atriz. Isso é muito importante de falar, gente. Eu não sou atriz. Isso é invenção de moda minha, entendeu? Eu fiz isso em Beijos no Chão, quando eu pedi pra profissionais diferentes olharem o meu livro e pensarem em peças pra eu divulgá-lo, e aí algumas pessoas fizeram isso, e eu divulguei com a arte dessas pessoas que eu contratei, e um diretor falou, “eu quero fazer com você assim, assim, assado, e é você que vai atuar”. E eu falei, mas imagina, não vou. Mas acabei fazendo, e o resultado ficou bem interessante, isso tem muitos anos. Ano passado, quando eu quis fazer a primeira campanha da primeira parte de Cama Rainha, eu pensei, eu mesma vou fazer repetindo a experiência de 2016, quando eu fiz em Beijos no Chão. E aí foi quando eu chamei o ator Vinícius Piedade, e a gente fez algumas cenas juntos e outras, eu fiz sozinha, aqui na minha casa. Interpretar olhando pra câmera, que são as narrativas em que eu estou em casa e eu narro em off, foi confortável, eu não fiquei com vergonha e eu achei que era eu, eu não estava interpretando. Agora, lá com o Vinícius, em outro apartamento, aquela coisa do vai, corta, não sei o quê, repete, eu fiquei um pouco encabulada, porque ele é um ator e eu não sou uma atriz, mas a gente tem uma história juntos. Então ele falou, “não, olha, é o seu texto, são suas ideias”. Todas as ideias da primeira campanha são minhas, a edição é minha, o roteiro é meu, então eu, sabe assim, eu me soltei, e foi como se fosse um ensaio. Eu me soltei nessas gravações com o Vinícius e aqui na minha casa, gravando aqui em casa, e aí quando chegou no filme eu já estava mais tranquila. Mas só que assim, gente, tem cena que tem que chorar e tem que chorar pra caramba, porque a diretora falou, “eu preciso que você chore muito”, e eu não sou uma atriz, eu não estudei arte cênica, eu não sei fazer isso, eu não tenho uma técnica pra isso. Aí a Carola entrou em cena, que a Carola é atriz, é professora de teatro. Então ela veio aqui, trabalhou isso comigo, a gente explorou a casa, a produtora colocou as músicas que ela sabia que iam tocar bem no meu coração, eu reli partes dos diários, isso fez com que mexesse muito. Eu tentei essa melancolia de todo jeito aqui em casa, a gente não saiu do apartamento em nenhum momento, a gente começou a trabalhar e a gente só parou quando acabou, e só saiu de casa de novo quando acabou. Então, quando elas chegaram, elas ficaram, a gente foi pedindo comida e a gente foi trabalhando os espaços. Elas só conheciam meu apartamento por foto e alguns vídeos, então muita coisa teve que ser pensada na hora. A gente tem efeitos especiais no filme e esses efeitos também, alguns foram muito de improviso. Gente, se vocês soubessem… Foi engraçado o nebulizador. Eu uso, e ele vazia o vapor, mas não o suficiente pra aparecer em cena, então eu tive que fumar um cigarro pra poder fazer a fumaça toda, mas esse foi só um dos efeitos, tem vários. Tudo foi pensado aqui, explorando a casa, a diretora basculhou tudo, tudo, tudo, abriu gaveta, olhou tudo, porque tudo podia ser importante pra ela. Eu acho que eu fiquei mais comovida sem ser pensando no filme, quando a gente fez uma sessão de entrevista pra poder divulgar no Instagram, e tal, e aí eu tive que responder a respeito de amor e tal, e aí nesse momento eu fiquei mais sentida. Mas pra fazer o filme, mesmo, foi só concentração, muita, muita concentração.
Livronews A Selma Senna e a Ana Cláudia estão perguntando como é que elas vão conseguir ver o filme, se não vão estar em São Paulo amanhã.
Dani Costa Russo Ai meu Deus, então… Esse filme foi feito pra circular em festivais de cinema, e tal. Então a Flor Filmes inscreve e fica circulando por festivais, e tal. Eu não fui nenhum ainda, porque foi tudo fora de São Paulo, então eu não posso disponibilizar em rede social por enquanto, porque eu preciso estar com tudo certinho, tudo bonitinho, pra conseguir participar dos festivais. Então, por enquanto, ele ainda vai circular em sala de cinema. Eu vou tentar ver, vou pensar a respeito, porque também agora eu tô querendo partir pro outro livro. Mas eu vou tentar alguma agenda, aí, pra levar, não sei, de repente levar pra Flip, que é uma oportunidade porque tem bastante gente, ou fazer em algumas capitais, enfim.
Livronews A Flip não tem uma amostra de filmes também?
Dani Costa Russo Tem, só que são filmes bem curtos. No ano passado, por exemplo, eu já tava com o filme pronto, mas eu nem me inscrevi, porque tem 15 minutos e os filmes dessa amostra são de 4 minutos.
Livronews Tá, então não dá. Aí você inscreve 4 vezes.
Dani Costa Russo (Risos)
Livronews Ô Dani, vamos falar um pouquinho, agora, da escrita de si. Do potencial da escrita de si para a obra literária e para o audiovisual.
Dani Costa Russo Vamos! Então, eu fiquei pensando nisso, porque quando eu lancei Beijos no Chão, super independente, lançando um romance que era uma autoficção, e, pra falar a verdade, eu nem sabia disso, porque eu era completamente amadora em tudo e eu não tinha esse conhecimento de que eu tinha feito uma obra de autoficção, eu só não queria que tivesse nome nos personagens e eu não queria que as pessoas pensassem que eu estava relatando uma história de violência que eu sofri, o que foi inevitável, eu não tinha como fugir disso. Então declarou-se e ficou dito que era autoficção. E rapidamente as pessoas me fizeram um grande favor de vir me avisar que a autoficção estava saturada no país, e que ninguém devia mais escrever autoficção, e aí eu respondi, “muito bem, eu acho que esse recado é para os homens”. Porque as mulheres estão começando agora. Então agora é nossa vez. Na prateleira do mercado, de autoficção de mulher, temos pouca. Então a gente vai fazer, sim e aí, beleza. Tanto que, agora, temos uma diversidade ótima, maravilhosa. Quando eu quis a escrita de si para o meu catálogo, eu não recebi originais que estivessem voltados a isso. Mas a gente sabe que muito do que é colocado no papel é algo que vem da escrita de si, mas que é transformado, para uma publicação, e para se despregar disso. Como editora, eu sei disso. E depois, quando eu começo o processo de edição, eu sei disso, então, assumidamente, eu queria algo de escrita de si, mas não tinha nada que tivesse de parecido, nas obras que eu tinha feito aquisição. Então eu disse, “eu vou fazer, eu farei”. É claro que sim, essa complexidade biográfica pode ser muito rica para a literatura e a identificação. Então, você vê, eu me identifiquei com a Annie Ernaux, uma francesa de uma idade diferente, de uma época diferente, lá no país dela, e eu consegui me identificar. Eu vi ali muitas das questões dela, eu me identifiquei e eu pensei, que legal. E, na primeira pessoa, então, achei fabuloso. Então eu fiquei encantada com esse aspecto, e outra coisa uma coisa que eu estava reparando é que, toda vez que lançam algum livro de não ficção de escritoras, falando do seu processo de escrita, eu fico tão apaixonada. Eu fico obcecada por uns meses com aqueles livros. Eu começo a ler, aí eu parto para o outro, aí depois eu junto todos, e aí eu entendi que é isso, quando elas estão conversando com a gente e contando uma coisa, “eu escrevo assim, eu escrevo assim”, eu já acho maravilhoso. Você imagina quando é contando uma história delas, então? Bom, para a literatura brasileira, digo que é riquíssimo e a gente tem que prestar atenção nessas autoras que estão apostando nisso. Para o meu catálogo, ainda estou buscando, ainda gostaria de encontrar mais disso, a autobiografia viva, as memórias. Meu, está todo mundo trabalhando memória, você acabou de fazer uma live com duas autoras minhas, que fizeram livros completamente baseados em memórias muito vivas, memórias de criança, memórias que elas foram construindo desde a infância, e aí elas criaram a ficção delas. Ok, a gente não é escrita de si, mas essa robustez da escrita que parte das próprias vivências, isso me encanta demais. Me encanta demais e eu acho muito corajoso, viu? Eu sinto que fiquei muito corajosa, depois que eu lancei Cama Rainha. É fácil de criticar uma obra que fala de si, né? Olha, eu estava num curso de escrita de si e uma pessoa foi fazer uma avaliação, e ela reclamou que a escrita de si é meio egóica, que a escrita de si satura porque só fala de si e ah… Então não leia, sabe? Bom, eu queria contar um causo. Depois que eu assisti a palestra da Annie Ernaux, eu estava assistindo a essa palestra ao lado de um jovem maravilhoso, que era o meu romance de Flip, né? Porque tem bastidores, né gente? Meu romance de Flip daquele ano, estava comigo, do meu lado, e é um editor fabuloso, e ele assistiu a palestra comigo e me viu chorar. Ele me viu ficar encantada e eu ali, sabe assim? Apaixonada. Aí, depois, a gente foi almoçar e eu peguei um diário. Peguei meu moleskine da bolsa e comecei a escrever. E ele, de brincadeira, falou, “querido diário…” Porque ele esqueceu que eu sou uma escritora, e ele estava levando aquilo pra uma coisa adolescente, assim, sabe? E eu fiquei furiosa Eu fiquei furiosa. Eu fiquei furiosa e eu coloquei no Cama Rainha, “querido diário”. Coloquei, eu acho que merecia. Eu fiz por rebeldia, sabe? Já nem sei mais em que parte eu coloquei, mas com certeza eu coloquei, porque foi a primeira coisa que eu pensei. Eu coloquei, e foi minha rebeldia, porque a maneira como ele falou foi tão, sei lá, diminuindo a potência da minha escrita, depois de ficar tão encantada com uma escritora, sabe? Nobel de literatura. Então eu vou fazer um diário e eu vou colocar, “querido diário”. Merece muito. Eu não escrevo querido diário, mas eu vou colocar.
Livronews Antes da pandemia, e agora também, você escreve diário já pensando em desdobramentos dessa escrita, ou não?
Dani Costa Russo Não. Eu passei a escrever menos, porque eu tenho diários diferentes, né? Eu tenho aquele que é para a escrita, em que eu despejo o que eu quero desenvolver para a literatura e ideias, também, que eu tenho, até para obras de autoras com quem eu trabalho, sabe? Esse é o caderninho para isso. Agora, no meu pessoal, eu percebi que eu fiquei até mais bagunceira, porque se antes eu não tinha uma cadeia, uma linha, e tal, agora menos ainda. Eu fiquei muito rebelde com esse negócio de fazer Cama Rainha. O que tá no meu diário pessoal eu não consulto para a escrita literária. Eu não tinha essa separação antes, mas depois, ficou muito confuso. Quando eu tinha que achar alguma coisa, eu não achava. Então, agora, eu tenho essa separação. Isso foi bom. Foi por causa de Cama Rainha que eu fiz essa separação. Eu encontrei várias coisas que eu queria escrever, de contos, de poemas… Eu falei, “olha, tava aqui o tempo todo, eu não lembrava”.
Livronews Mas também não vai ter a tentação de ir nessa fonte pessoal para buscar coisas, não?
Dani Costa Russo Pode ser, pode ser…
Livronews Mas sem a intenção, né?
Dani Costa Russo Sem a intenção. Eu tenho os diários da Virginia Woolf aqui e eu acho que foi em algum prefácio desses diários… Eu tenho das edições são edições de editora portuguesa, eu comprei lá em Lisboa. E aí, em alguma parte, está dizendo que ela escrevia com a intenção de ser publicado, então ela fazia os diários dela sabendo que ia ser publicado. E aí, era meio… Sabe, assim? Não era totalmente real. Eu não sei, né? Tá lá no livro.
Livronews Isso me lembra uma história de Drummond, também. Porque Drummond trocou milhares de cartas com um monte de gente, né? A troca de mensagem da época era escrever carta para lá e para cá. No início da carreira, ele escrevia cartas de um modo muito mais solto do que depois da maturidade, porque quando ele começou a ficar famoso, ele tinha noção de que as cartas dele também eram a obra dele. Então ele passou a escrever as cartas de outra forma, de outra maneira. Realmente voltada para a valorização da obra. Sabia que as cartas iam ser publicadas, depois.
Dani Costa Russo Eu acho, assim… O dia em que eu não estiver mais aqui, por favor, queimem esses diários, pelo amor de Deus! (Risos) Eu vou deixar instruções para os meus filhos.
Livronews Bom, tem outra coisa. Sobre adaptação de livro para o audiovisual. Você chegou a ter alguma referência para o Cama Rainha, ou a equipe de produção pensou em alguma coisa para inserir lá?
Dani Costa Russo De adaptação de livro, não. Mas tudo isso começou no mesmo momento que estava passando, aqui no Brasil, Aftersun, da diretora Charlotte Wells. E olha, eu vou te dizer, eu fiquei bem comovida com esse filme. Eu assisti, inclusive, com o Vinicius, que é o ator da primeira parte da Cama Rainha, e aí eu falei para ele, “quando a gente for gravar a campanha de Cama Rainha, eu gostaria que tivesse essa sutileza desse filme”. Tanto que, vocês podem ver, eu editei de uma maneira, que tem uma luz envolvente. Quem viu a primeira parte da campanha, tem uma luz envolvente, tem todo um movimento mais lento, tem um olhar, uma coisa assim. Aí eu falei para a diretora que esse filme me tocou demais, e quem sabe a gente não se inspire nele para esse resgate de memória? E aí ela usou a luz dela, a técnica dela, ela não foi fazer nada que imitasse a diretora de Aftersun, mas ela falou que entendeu o que eu queria, e aí a gente partiu dessa melancolia, essa coisa que é narrada no filme, na história, o que é verdade, o que não é verdade, o que é uma lembrança, o que não é, o que misturou com o que é desejo… Então ela meio que construiu cenas em cima disso, mas não é de uma adaptação de livro.
Livronews Massa, Dani. E qual vai ser o próximo livro-filme ou filme-livro?
Dani Costa Russo Eu estou fazendo um romance. Eu até tenho o título dele, e tal, mas eu não vou falar, ainda. E eu não sei o que vai ser desse romance. A ideia é que outra editora assuma, porque eu realmente não vou mais me editar. Está em desenvolvimento, eu deveria estar com ele pronto em dezembro, mas vamos ver se eu consigo, para no ano que vem bater na porta das editoras, para ver quem me publica. Aí eu vou estar do outro lado. Alguém, por favor, faça aquisição. E é isso. Não sei se vai virar filme, acho que não, mas é um romance. Estou com saudade de romance. Ah, teve um rapaz na Bienal do Rio, eu não vou lembrar o nome dele, que foi me procurar para falar de Cama Rainha. Aliás, ele me procurou depois da Bienal e falou que considerou que era um romance. Ele falou, “para mim é um romance com uma outra estrutura”.
Livronews Só para fechar: esse romance tem alguma coisa de descrita de si ou é janela aberta, não?
Dani Costa Russo Eu não vou dizer que é autoficção, não. Tem personagens que eu estou trabalhando, já, há algum tempo. É uma personagem que surgiu para um conto, há muitos e muitos anos, em 2015, a Esther. E eu queria trazer ela para o livro, mas quando eu trouxe, eu percebi que seria mais interessante se ela tivesse uma companheira, alguém que narrasse aquela história, não ela própria. Aí eu trouxe mais outro personagem, e aí são essas duas. É um romance epistolar. Então vamos ver o que será disso. Estou com tanta obra, agora, para editar, da Ana Cláudia, que está aqui… Estou com muita obra para editar, tudo vai se resolver, vocês sabem que eu sou assim, né, gente? Eu faço aquisição, vou no meu ritmo, ali, e tal, mas todas são publicadas e todas vão para o mundo, e vão para feira e vão para um monte de lugar, e faz turnê, é isso.
A gravação completa da live está disponível no Instagram da Livronews.