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Embate entre poesia e censura em Belo Horizonte

Por Yellow

Quem tem medo de música e poesia?

Na ensolarada tarde de sábado, 14 de setembro, no bairro Savassi, em Belo Horizonte, a truculência inusitada de um destacamento da Polícia Militar interrompeu o lançamento do livro “Fora do prazo de validade”, de Ana Paula Dacota, que ocorria em frente à Livraria Scriptum.

Durante a apresentação de free jazz da banda The Elephants Fusion, com participação especial da autora e convidados, declamando seus poemas, vizinhos incomodados com o que consideraram “barulho” e “perturbação da ordem”, se acharam no direito de acionarem militares para constrangerem os participantes e interromperem o evento. Usaram técnicas de intimidação, como pedir documentação dos presentes, consultando seus nomes em cadastros e sistemas criminais em busca de antecedentes criminais, enviando seus dados para terceiros, e exigindo a apresentação de alvará de funcionamento, ao dono da livraria. Tudo isso, sem sequer realizar medição sonora, para comprovar a justificativa da abordagem.

Vale ressaltar que não cabe à Polícia Militar, no Brasil, a inspeção de eventos culturais. E que a lei da cidade de Belo Horizonte não apresenta nenhuma qualificação de crime para o que estava ocorrendo, já que a “lei do silêncio” só vigora a partir das 22h.

A apresentação acabou sendo encerrada precocemente, às 14h30.

Diante do que só pode ser interpretado como uma violação de direitos, a Comissão de Liberdade de Imprensa e Expressão da OAB-MG publicou uma nota pública de desagravo, classificando o episódio como censura:

A situação vexatória, injusta e ilegal sofrida pelas vítimas revela a ausência de protocolo, critérios e preparo para realização de abordagens policiais envolvendo eventos culturais, principalmente diante de uma legislação confusa e de difícil aferição prática.

Está, no caso, sem remota sombra de dúvidas, caracterizada a CENSURA!

Diante de um episódio claramente reminiscente dos anos de ditadura militar no Brasil, o Livronews conversou com a poeta e professora Ana Paula Dacota. Acompanhe, abaixo, nossa entrevista e a nota da OAB-MG.

Em tempo: “Fora do prazo de validade” terá um RElançamento neste sábado, no SANTO BOTECO (rua Major Lopes, 4, São Pedro, MG), a partir das 15h30. Desta vez, com muito samba ao vivo.

LivronewsDá pra explicar o que aconteceu no evento de lançamento do seu livro, no dia 14 de setembro?
Ana Paula Dacota Eu levei uma banda de jazz-punk para tocar no meu lançamento na Livraria Scriptum. O The Elephants fazem um jazz não-convencional, com batidas punks e misturas eletrônicas, um som realmente diferenciado. As pessoas que estavam sentadas no bar ao lado se sentiram incomodadas com a música e com a altura do som. Algumas vezes essas pessoas tentaram atrapalhar a apresentação da banda acionando alarmes de carros que estavam estacionados de frente pra livraria, como pode ser visto em vários vídeos que divulgamos nos perfis do Instagram. Até que, por volta das 14h, apareceu uma viatura policial com dois militares, que pararam em frente à Livraria e pediram para falar como dono do estabelecimento, no caso, o dono da Livraria, o Betinho, que ficou prestando esclarecimentos acerca do show, atendendo ao chamado de perturbação da paz e de som alto. Sendo que eram 14h horas, e a lei do silêncio em BH vale é a partir das 22h, e outra: não houve medição de decibéis, nem nada. Betinho teve que apresentar documentos pessoais e até o alvará de funcionamento do estabelecimento, sendo que não é função da PM fazer tal tipo de fiscalização, ou seja, uma batida totalmente irregular e truculenta. O resultado é que ficamos todos tensos, os músicos pararam de tocar, às 14h30, e o evento se encerrou com a polícia indo embora sem ter o que fazer, porque o que ela foi lá fazer, ela conseguiu, que foi interromper nosso evento a mando de cidadãos que quiseram mostrar o seu poder, sua intolerância à música diferente que estava sendo tocada, e foi uma abordagem abusiva no sentido de que não estávamos fazendo nada, nada absolutamente de errado, e muito menos infringindo nenhuma lei.

Livronews⁠Qual a justificativa que Policiais Militares apresentaram, para intervir no evento?
Ana Paula Dacota Som alto. Acontece que não apareceu nenhum fiscal da Prefeitura pra fazer medição de decibéis e não havia perturbação da paz no horário que a banda começou a tocar. Eles começaram a tocar por volta de 13h, ou seja, este horário não está infringindo o código de Belo Horizonte. Há sempre inúmeros shows na região da Savassi, durante o dia. Há muita intolerância nesta cidade, isso sim, pois quando a polícia é chamada para atender perturbação às 02h, como uma amiga minha já pediu e não foi atendida, de madrugada, os policiais não aparecem, mas quando é chamada às 14h, num lançamento de livro, em uma livraria, ela comparece prontamente? Tem algo muito errado nisso! Não é responsabilidade da Polícia Militar fiscalizar o estabelecimento! Nem é legal abordar (e abortar) um evento com músicos tocando durante dia!

LivronewsEm algum momento das declamações e apresentação musical foi puxada alguma palavra de ordem política, ao menos?
Ana Paula Dacota Para encerrar o show que já estava se encerrando, devido à abordagem dos militares, foi declamado um poema com tom político, sim, que falava contra o fascismo. Mas foi só no final.

LivronewsA OAB denunciou o ocorrido, em nota de desagravo, como censura. Qual a sua opinião?
Ana Paula Dacota Concordo totalmente, pois a partir do momento em que a sua liberdade de expressão é cerceada pela presença da polícia militar, intimidando, fazendo sua presença sobressair no evento, arguindo o dono da livraria, isso passa a ser uma coerção das atividades culturais que ali estavam sendo exercidas, pois as mesmas estavam sendo questionadas. Talvez, em outros tempos, poderíamos ser presos por estar lançando um livro e/ou fazendo um show de jazz-punk, das 12h às 15h da tarde. Era uma apresentação acústica onde eu fazia algumas leituras de poemas e nada mais. O show terminou às 14h30, devido à intervenção policial, ficamos desmotivados de continuar, os músicos começaram a guardar os instrumentos e acabou o evento, acabou com o clima.

LivronewsO Jazz nasceu como uma música negra, de gueto, mas hoje é até considerado uma expressão musical elitizada… Como explicar que, no ano de 2024, Jazz e Poesia ainda incomodem certos setores da nossa sociedade?
Ana Paula Dacota Porque o jazz da banda The Elephants é um jazz-punk, é hardcore, é cheio de improvisações e mescla batidas eletrônicas, sons diferenciados, incomoda, no sentido de ser diferente, não convencional. Então, para a galera que está acostumada com outros tipos de música, de outros gêneros, realmente soa estranho e causar essa estranheza agora parece ser crime, pois não há tolerância com a diversidade, com o diferente, a meu ver. Se a pessoa está incomodada, ela que se retire e vá ouvir o som que gosta em outro lugar, mas ali é um local público, estávamos ocupando a frente da livraria, então tínhamos essa liberdade (ou não tínhamos?) de fazer a apresentação desta música. No entanto, cidadãos incomodados, e que queriam mostrar a extensão da sua influência, preferiram chamar a polícia, que prontamente atendeu a este chamado totalmente desnecessário. No meu ponto de vista, o que aconteceu no meu lançamento foi uma demonstração de poder, tão somente, tipo, vou chamar a polícia para acabar com este evento, porque ele me incomoda, e pronto.

LivronewsOs organizadores do evento que sofreu a intervenção no dia 14 ainda temem represálias?
Ana Paula Dacota Eu não temo represálias, pois estou no meu direito e amparada pelas leis constitucionais deste país, exercendo a minha liberdade de expressão e tenho comigo a Comissão de Liberdade de Imprensa e Expressão de Minas Gerais da OAB para resguardar meus direitos e me amparar em relação ao ocorrido. Então, vou prosseguir com meu trabalho, escrevendo meus livros e fazendo mais lançamentos, com banda de jazz-punk ou não, porque o que tentei fazer foi oferecer ao público uma experiência diferente, na Livraria Scriptum, sair do convencional, do “mais do mesmo”, mas os fatos mostram como a intolerância está realmente muito forte na nossa sociedade.

Abaixo, a nota de desagravo publicada pela Comissão de Liberdade de Imprensa e Expressão da OAB-MG:

Yellow é Luiz Eduardo Cerquinho Cajueiro, recifense, designer, programador, músico, Mestre em Ciências da Linguagem e parte da equipe Livronews.

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