Para quem faz livro e
Para quem gosta de ler
Vera Lúcia da Silva. Foto: Salatiel Cícero

“Espanador não tira poeira”: Vera Lúcia da Silva fala sobre o livro que dá voz às trabalhadoras domésticas e suas lutas

Vera Lúcia da Silva, 61 anos, moradora da periferia do Recife, acabou de lançar Espanador não tira poeira: memórias e aprendizados de uma empregada doméstica, um livro que traz à tona a trajetória de mais de cinco décadas de trabalho invisível, marcado por humilhações, preconceito e resistência. Natural de Sirinhaém, na Zona da Mata Sul de Pernambuco, Vera começou a trabalhar como empregada doméstica aos 12 anos, enfrentando as dificuldades do trabalho desde a infância. Durante sua jornada, lidou com condições precárias de trabalho, violência simbólica e a invisibilidade social das mulheres negras e periféricas.

O livro, lançado com o selo da Editora Mirada, é um reflexo de sua experiência, mas também uma forma de Vera compartilhar suas conquistas e reflexões sobre dignidade e respeito no trabalho. A publicação foi escrita em parceria com Wedna Galindo, doutora em Psicologia pela Universidade Católica de Pernambuco, que conheceu Vera nos anos 1990, quando a autora trabalhava na Biblioteca do Centro de Filosofia e Ciências Humanas (CFCH) da Universidade Federal de Pernambuco. A relação entre elas começou com o cuidado que Vera tinha com os livros da biblioteca e cresceu em conversas sobre as dificuldades do trabalho doméstico, transformando-se em uma colaboração para o livro.

Wedna foi fundamental para ajudar Vera a transformar suas memórias em um relato reflexivo, respeitando o desejo da autora e incentivando-a a acreditar na potência de sua história. A obra traz relatos pessoais e uma crítica às condições de trabalho doméstico, destacando o que foi, muitas vezes, tratado como invisível. A narrativa de Vera é um convite a refletir sobre a valorização do trabalho, a luta por direitos e a importância de dar voz às histórias daqueles que, por muitos anos, permaneceram à margem.

Nessa breve conversa, Vera e Wedna contam como se deu a produção do livro e sobre o desejo de que seja lido por outras trabalhadoras, ajudando na tomada de consciência sobre seus direitos.  


Vera, gostaria que você falasse um pouco sobre o livro. Como a ideia de botar no papel sua história surgiu?

VERA LÚCIA Surgiu através de uma pessoa com a qual eu trabalhava. Como eu falo muito, ele sempre virava para mim e dizia que eu deveria escrever um livro.  Isso foi me incomodando. Eu conversava com as outras trabalhadoras, conversava com a filha dele, conversava com todo mundo que chegava. E ele sempre dizia que eu conversava demais, que eu deveria escrever um livro.  Daí eu decidi escrever.

Como se deu o processo de produção de Espanador?

VERA LÚCIA Eu falei com Wedna, perguntei se ela poderia escrever as minhas memórias, minha história. E ela aceitou.

WEDNA GALINDO Vera já fazia faxina aqui em casa há um tempo e a gente conversava bastante. Ela ia contando suas histórias, lembranças e, vez por outra, surgia uma situação mais pesada, envolvendo humilhação, exploração. Eu perguntava e ela contava todos os detalhes. E veio dela esse desejo de transformar essas vivências que traziam incômodos num livro. Eu comecei a escrever, mas não foi fácil chegar ao formato final. Eu sistematizava e escrevia tudo o que a gente conversava sobre um determinado tema, como acidente de trabalho. Juntava aquele conteúdo e depois lia para Vera avaliar. Ela fazia os ajustes necessários para fazer sentido para ela. Sempre foi nessa direção, porque Vera queria muito que as trabalhadoras domésticas lessem, que pensassem também sobre as suas rotinas, sobre os seus trabalhos. Então, acabou que a gente fez vários ajustes. Troca de palavras, uso frases mais curtas e não muito longas, algumas formações gramaticais a gente ajustou, porque a ideia era que fizesse sentido.

 Vera, na sua visão, qual a importância de documentar uma história como a sua?

VERA LÚCIA É importante que outras empregadas domésticas consigam ler esse livro, tirem suas conclusões e façam uma mudança na vida delas para melhor. Algumas pessoas ainda precisam se libertar de certas coisas. Eu acho o livro vai ajudar muitas outras empregadas domésticas que acham que ainda têm que viver naquele sistema de antigamente. Como é o de antigamente? Antigamente é:não ter hora para largar, mas ter hora para pegar; não ter os acordos respeitados; os pagamentos não serem respeitados; as folgas. Então, eu espero que ajude as empregadas a entender seus direitos.

Como tem sido a recepção da obra?

WEDNA GALINDO A gente já fez o lançamento numa livraria, com uma grande divulgação e foi o maior sucesso. Eu não esperava que fosse tanto. Eu queria muito que o livro saísse e nós ficamos muito felizes com isso, com essa presença de público no lançamento. A gente estava pensando, planejando, organizando esse material há muitos anos. Tinha muitos amigos meus e de Vera na livraria, mas apareceu muita gente que chegou através da mídia, da divulgação. Eu fiquei muito feliz.  Agora, eu particularmente espero que os assuntos que estão lá dentro, essas memórias da Vera, os aprendizados, as coisas que ela quer transmitir, que a gente comece também a ter espaço para poder falar mais sobre isso. A gente espera que o pessoal leia, pense, comente, para poder isso ir para frente.

VERA LÚCIA Exatamente. Ir para frente, para a gente poder ajudar outras… Eu quero ajudar outras companheiras minhas.

Entre tudo que você narra no livro, tem algum trecho ou história que gostaria de chamar a atenção?

VERA LÚCIA São várias histórias que me chamam a atenção. Eu gosto muito de viajar. Eu já fiz várias viagens. Eu gosto muito de fazer rapel, de me aventurar de fazer trilha.  Eu viajo sempre em grupo e o que eu percebo é que dentro desses grupos aparece o preconceito das pessoas.  Eu sofro com dois preconceitos:  um por ser negra e outro por ser empregada doméstica. Na cabeça do povo, empregada doméstica tem que estar sempre atrás de um fogão cozinhando. Eu já escutei isso. Como eu viajo com pessoas de vários tipos, médico, advogada, essas coisas, isso choca muito. Eles se incomodam tanto que chegam a perguntar a mim como é que eu, como empregada doméstica, consigo viajar. Isso me chocou muito numa viagem, essa pergunta que um casal fez para mim. Tem muito preconceito por ser empregada e por ser negra. Ninguém vai na sua mesa no hotel e ninguém te atende. É como se eu não fosse a cliente. Eu já sofri isso em um lugar que tem mais negro do que branco. Em Salvador, na Bahia, eu sofri preconceito de uma pessoa negra, igualzinha a mim, porque eu estava com minha filha e meu genro que são brancos.  Eu sofri. Foi até engraçado nessa hora. Mas é assime a vida segue. E eu vou continuar viajando, fazendo as coisas que eu gosto.

Após a PEC das domésticas, as trabalhadoras sentiram mudanças reais no seu dia a dia?

VERA LÚCIA Acho que pouca coisa foi alterada. Foi bom que muitas empregadas domésticas agora têm carteira assinada, têm os direitos delas numa carteira. Mas muitas ainda que descobrem depois que os patrões não pagam nada. Ainda acontece muito isso. Aí tem que ir para a justiça. Tem que ir no Sindicato das Empregadas Domésticas. Eu queria orientar muito as minhas companheiras que, quando elas tivessem essa dificuldade, procurassem o sindicato das domésticas, que está lá para orientar e dar apoio a elas. Mas muitas acham que não, que é os patrões que vão ter direito lá. E não é. O patrão tem direito e os empregados também têm. Deveria já ter melhorado bastante, mas é tudo muito lento. Hoje tem empregada doméstica fazendo a função que antigamente tinha três, quatro pessoas fazendo. É uma só fazendo agora. Todo o serviço por um salário só. Antigamente, as casas tinham lavadeira, cozinheira, babá, faxineira, arrumadeira, jardineiro. Então, hoje, tem empregada que está fazendo tudo isso. Algumas fazem até jardim. Então, eu acho que ter uma carteira assinada se torna um preço, às vezes, muito alto. Tem muitas empregadas sendo sobrecarregadas. Se é cozinheira, você tem só que cozinhar. Você tem que cozinhar, tem que lavar, tem que passar e tem que ser babá. Não é justo isso.

Vera, queria que você contasse como se deu seu primeiro contato com o universo da literatura.

VERA LÚCIA Eu não sabia ler na época. O meu primeiro contato foi quando eu achei uma revista de fotonovela e um livro de histórias de aventuras no lixo. Quando eu folheei, achei muito interessante e guardei. Eu tinha na época 14 para 15 anos. Eu só aprendi a ler com mais de 30. Comecei a estudar, eu ia fazer 25 anos, e terminei com 30 e poucos. Eu trabalhava muito, eu tinha filhos. Quando aprendi, peguei aquelas obras que tinha guardado e achei bem interessante. Até hoje tenho essas duas publicações em casa.

Daqui para frente, você pensa em seguir escrevendo?

VERA LÚCIA Vamos primeiro curtir esse que foi lançado. Nós vamos curtir ele. Depois, vamos continuar conversando, espero que nós continuemos conversando. E, quem sabe, não saia o segundo livro. O que você acha, Wedna?

WEDNA GALINDO Eu acho que nós podemos continuar conversando. Eu, particularmente, acho que já te falei, antes de você me pedir para escrever o livro,  que eu tinha um projeto de escrever biografias de pessoas que não fossem famosas. Escrever sobre as histórias das pessoas. Como eu trabalhei com trabalhadores rurais, por exemplo, eu pensava em escrever sobre eles, pessoas comuns. E aí, de fato, quando a gente foi fazendo juntas, foi massa. Então, eu tenho vontade de fazer esse exercício, que foi um exercício interessante para mim, de poder escutar a sua narrativa, poder construir uma narrativa para isso.  Quem sabe, depois desse, a gente não faz outro, envolvendo isso e mais assuntos diferentes. No dia do lançamento, alguém disse. Quando é o próximo? Vamos começar a conversar.

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