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João Cabral de Melo Neto no interior de Pernambuco, 1984 - acervo familiar

João Cabral de Melo Neto: a poesia como arquitetura de palavras

Hoje, comemoramos os 105 anos de nascimento do recifense João Cabral de Melo Neto, um dos maiores nomes da literatura brasileira do século XX. Poeta e diplomata, ele construiu uma carreira marcada pelo rigor técnico e por uma escrita que rompeu com o sentimentalismo romântico. Sua poética, muitas vezes descrita como “seca” e “construtiva”, buscava a precisão e a clareza, características que o aproximavam mais da arquitetura e da engenharia do que da tradição lírica emocional. Não por acaso, ficou conhecido como “o poeta-engenheiro”.

Desde jovem, João Cabral se interessou por literatura, especialmente pela poesia. Apesar de ter tido uma vida repleta de deslocamentos devido à carreira diplomática, nunca deixou de voltar seu olhar para o Nordeste brasileiro, especialmente para as dificuldades de sua terra natal. Essa dualidade – o homem cosmopolita e o poeta ligado às raízes nordestinas – foi um dos principais motores de sua criação literária. A sua estreia na literatura aconteceu com Pedra do Sono (1942), em que já era possível identificar sua busca pela contenção e pela objetividade poética.

Entre suas principais obras, destaca-se Morte e Vida Severina (1955), um auto de natal pernambucano em versos que retrata a saga dos retirantes nordestinos em busca de melhores condições de vida. A peça-poema é considerada uma das mais significativas expressões artísticas sobre o drama da seca e das desigualdades do sertão. O personagem Severino, que representa tantos nordestinos anônimos, tornou-se um símbolo da resistência e do sofrimento de um povo. Publicada originalmente para ser encenada, a obra teve grande sucesso no teatro e recebeu várias adaptações para a televisão e o cinema, sendo amplamente lida e encenada até hoje. A versão de 1965, musicada pelo então jovem Chico Buarque é a mais lembrada de todas.

Outro marco da trajetória literária de João Cabral é O Cão Sem Plumas (1950), um longo poema que narra, em tons épicos e com uma perspectiva crítica, a miséria das populações que vivem às margens do Rio Capibaribe, que nasce no Agreste pernambucano e desemboca na capital Recife. Ao personificar o rio e transformá-lo em um observador e narrador da realidade que o cerca, o autor cria um retrato brutal da desigualdade social. A escolha por uma narrativa visual e cinematográfica transforma o texto em uma verdadeira pintura em movimento.

Além dessas obras, A Educação pela Pedra (1966) é um exemplo de como o poeta elevou objetos e elementos cotidianos a metáforas de aprendizagem e transformação. O livro, vencedor do Prêmio Jabuti de Poesia, apresenta poemas que refletem sobre o aprendizado constante imposto pela aridez do sertão. A pedra, nesse contexto, deixa de ser apenas um elemento natural e torna-se símbolo do esforço necessário para entender e sobreviver às adversidades da vida.

João Cabral sempre rejeitou o sentimentalismo fácil, preferindo uma abordagem mais racional e “arquitetônica” da poesia. Ele acreditava que o poema não deveria ser uma expressão subjetiva e emotiva, mas uma construção precisa de palavras. Sua escrita reflete influências do concretismo, do surrealismo e da literatura de vanguarda, mas sem perder a conexão com a realidade social. Para ele, a poesia era um espaço de criação intelectual e de crítica às injustiças do mundo.

Apesar de sua abordagem austera, suas obras possuem uma beleza ímpar, construída pelo contraste entre a precisão das palavras e a potência dos temas abordados. Essa dualidade o consagrou como um autor universal, cuja obra transcende barreiras culturais e temporais. Não é à toa que João Cabral foi traduzido para diversas línguas e estudado em universidades ao redor do mundo. Foi o segundo laureado com o Prêmio Camões, em 1990, e eleito membro da Academia Brasileira de Letras em 15 de agosto de 1968, e empossado em 6 de maio de 1969.

João Cabral na ABL – acervo familiar

Além de ser um poeta notável, João Cabral foi um diplomata de destaque. Atuou em países como Espanha, França e Senegal, onde representou o Brasil com distinção. Essa experiência no exterior influenciou sua escrita, sobretudo pela convivência com outras culturas e movimentos artísticos. Ele manteve uma forte ligação com a Espanha, terra que admirava profundamente e que serviu de cenário para vários de seus poemas, como Sevilha Andando (1989).

A obra de João Cabral também influenciou artistas de outras áreas, como a música e o cinema. Composições de Chico Buarque, como “Funeral de um Lavrador” e “Morte e Vida Severina”, são exemplos de como sua poesia ultrapassou as fronteiras da literatura. O espetáculo musical inspirado em Morte e Vida Severina continua sendo aclamado por críticos e pelo público até hoje.

João Cabral de Melo Neto faleceu em 9 de outubro de 1999, no Rio de Janeiro, deixando um legado literário inestimável. Sua obra permanece atual e relevante, sendo leitura obrigatória para quem deseja compreender a relação entre forma e conteúdo, razão e emoção, palavra e silêncio. Mais do que um poeta, ele foi um arquiteto de emoções humanas, criando edifícios sólidos com versos.

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