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José Teles e “Criança de Domingo”, a biografia musical de Chico Science

Por Yellow

Este final de ano viu um dos lançamentos mais aguardados para os fãs do Manguebeat e da música pernambucana. Da Editora Belas Artes, veio Criança de domingo: Uma biografia musical de Chico Science (editora Belas Letras), do crítico musical José Teles. Em meio a outras publicações que surgiram nos últimos anos, com o tema do Movimento Mangue, que eclodiu no Recife, no início dos anos 1990, como Memórias de um motorista de turnês (Paulo André Moraes Pires, 2022, Cepe), Mundo Livre S/A 4.0: Do punk ao mangue (Pedro Luna, 2024, Ilustre), Soparia: De boteco a palco de todos os sons (do próprio Teles, 2023, Cepe) e Chico Science & Nação Zumbi: Da Lama ao Caos (Lorena Calábria, 2019, Cobogó), a obra ganha relevância por ser de autoria de um dos críticos musicais que acompanhou mais de perto a trajetória meteórica de Chico Science.


Paraibano de Campina Grande radicado no Recife, Teles publicou seu primeiro texto jornalístico n’O Pasquim, em 1978, e foi cronista esportivo, no início dos anos 1980. A partir de 1987, passou à crítica musical no Jornal do Commercio, enquanto, durante anos, manteve paralelamente um emprego de bancário, que só deixaria nos anos 2000. Nos anos 1990, suas resenhas (na coluna semanal Toques), atreladas a inúmeras matérias, entrevistas e coberturas, acompanharam não apenas o que acontecia de mais relevante no Brasil e no exterior, como noticiava e, assumidamente, promovia a cena musical pernambucana, com acesso a muitos músicos, fossem eles do rock, da MPB ou forró.

Além de continuar escrevendo crítica musical, em seu blog e perfil do Instagram, Teles é autor prolífico de livros em diversos gêneros. Nos últimos 30 anos, publicou dezenas de títulos, entre coleções de crônicas, romances, ficção científica, literatura juvenil e infantil e livros paradidáticos. Dentre os livros sobre música, destacam-se a biografia Claudionor Germano: a voz do frevo (2017, Cepe), Lá vêm os violados: Quinteto Violado (2021, Cepe) Cume é o nome dele? Manezinho Araújo, o Rei da Embolada (2013, Bagaço), e Do frevo ao manguebeat (Editora 34, 2000). Este último reconta um século de música pernambucana, da criação do frevo, passando pela história da gravadora Rozenblit e pela psicodelia dos anos 1970, até desembocar nas bandas do Movimento Mangue, e se tornou uma referência nacional sobre o tema.

Teles foi figura participante da cena musical de Chico Science, tendo sido, inclusive, a pessoa que, ao notar semelhanças com o discurso construído pelos mangueboys, mostrou a Chico uma cópia surrada do romance Homens e caranguejos (1967), do pensador pernambucano (e Cidadão do Mundo) Josué de Castro, cujas obras estavam fora de catálogo porque haviam sido proibidas pela ditadura militar. Josué, médico e nutricionista que definiu e denunciou o problema da fome nos países subdesenvolvidos (o que hoje se chama Sul Global) acabou virando uma referência, sendo citado em várias músicas.

Em entrevista ao Livronews, o crítico musical fala sobre o processo de escrita do novo livro, a partir de suas memórias e vivências, mas também do contato com amigos de infância de Chico e companheiros das primeiras bandas. Em poucas palavras, de sotaque ligeiro, mas cheias de referências, lembra também de como o Movimento Mangue tirou Pernambuco do marasmo cultural dos anos 1980 e trouxe de volta uma efervescência de relevância nacional, que havia desaparecido desde o fim da gravadora e fábrica de discos Rozenblit.



1.  Você é autor de um dos livros mais citados em estudos sobre a música pernambucana, Do frevo ao Manguebeat. Continuou, recentemente, a documentar a cena Mangue com o livro de histórias sobre a Soparia. Existem outros projetos seus em andamento, sobre este período tão importante para a cultura do estado?

Na verdade, o Do frevo ao manguebeat tem um resumo de, vamos dizer, 100 anos de música pernambucana, né? Desde o início do século XX até o começo do… até o fim, né? Ele foi escrito, mais ou menos, em 99, e publicado em 2000. Aí fiz o da Soparia, né, e agora foi o de Chico. Tem a biografia paradidática de Chico [O Malungo Chico Science, Bagaço, 2003], que foi encomendada pela prefeitura, e escrevi pra algumas revistas, especiais sobre o Manguebeat… Escrevi muito sobre o Manguebeat, né? Mas hoje não tenho mais interesse em escrever, não, isso aí foi uma coisa que eu até fiquei meio cismado de ter aceitado, porque você vai ver hoje em dia no Google, o que tem de Chico, tem muita coisa equivocada, sabe? Coisa que não era verdade, que virou verdade… Hoje, a verdade, você não sabe nem o que é. A verdade, hoje em dia, eu acho que é difícil saber, porque tem tanta coisa que botaram, que inventaram, que criaram, que distorceram… Então, nesse livro, eu tentei me fixar basicamente na música de Chico.

2.⁠ ⁠Em muitos lugares, vi este livro sendo descrito como “a biografia definitiva” de Chico Science. Você concorda? Se não concorda, o que ficou de fora?

Não é a biografia definitiva de Chico, não! Inclusive, biografia é uma coisa meio complicada, porque só quem sabe da vida da pessoa é a pessoa, nem a própria família sabe. Eu já fiz uma biografia de Claudionor Germano, mas eu abordei muito mais a era do rádio pernambucano. Não é definitiva não, é apenas musical. Eu me fixei na música de Chico e voltei no passado dele, na rua que ele morava e tal, com os amigos de infância, e percorri os caminhos dele até chegar a Chico Science e Nação Zumbi. O que ficou de fora foi a vida particular dele, porque eu não tenho muito interesse em saber disso. A gente nunca sabe o que é verdade ou o que não é, né? Eu não gosto de certas biografias, que são feito cinebiografias. É uma coisa muito rala, né? Só quem sabe da vida da pessoa é a pessoa.

3.⁠ ⁠Como foi o acesso e a colaboração dos familiares, amigos e colegas de Chico, para a realização desta biografia?

Com a família, eu falei pouco. Não falei com a família porque eu já tinha muita coisa, inclusive. Eu tinha um depoimento grande de Goretti (irmã de Chico Science), de quando a gente fez aquele filme [Chico Science: Um Caranguejo Elétrico, 2016, dirigido por José Eduardo Miglioli Junior] e, na verdade, eu queria saber sobre a música, e, sobre a música, quem sabia era Chico e os amigos de Chico. Os caras conviviam nos apartamentos, e tal. Os caras fizeram música com eles… Pra mim, a biografia era mais interessante. Amigos, eu falei com muitos, inclusive eu falei com amigos que eu nunca… Amigos de infância, de adolescência… Chico era um cara muito musical, ele viveu a vida toda com música. Eu falei, inclusive, com um cara que me deu muita dica de Chico enquanto criança, que foi Aderson, que era o maior amigo dele, e que hoje mora na Alemanha. Falei com o pessoal da Orla Orbe, que foi a primeira banda dele, e tem gente que mora fora, em Portugal… Falei com os amigos, principalmente. Mabuse, DJ Dolores, Jorge du Peixe, que veio aqui na minha casa, entrevistei ele aqui em casa, e tal. É isso, é uma biografia musical.

4.⁠ ⁠Você foi uma figura influente nesta história. Conviveu com Chico e apresentou a ele o livro de Josué de Castro, que serviu de inspiração para todo o imaginário do mangue e dos caranguejos com cérebro. Chegou a emprestar uma guitarra a alguém… Foi a Lúcio Maia (Nação Zumbi) ou a Fred Zero Quatro (Mundo Livre S/A)? Como você fez para tratar, no seu livro, dos elementos autobiográficos?

Na verdade, a gente foi influente. Todos nós, que escrevemos sobre o Manguebeat e abrimos espaço para eles. Quando eu vi que era uma coisa que tinha conteúdo, que era uma novidade, eu abri espaço, o máximo possível, né? Quer dizer, eu fiz a primeira matéria que saiu sobre o Manguebeat no Sudeste, que foi na BIS, na Revista BIS, em 1993. Eu mandei a fita… Eu não tenho esse negócio de ficar com o material de ninguém, então eu mandei a fita demo, que eles me deram a cópia, para o Arto Lindsay, que eles queriam que fosse o produtor [do primeiro disco da banda]. Eu mandei essa fita, e eu nem tenho essa fita, mais. Quer dizer, eu não coloquei minha participação na história não, muito pouco. A minha guitarra, eu emprestei pra Fred [Zero Quatro], que, até, no disco [Mundo Livre S/A, Samba esquema noise, 1994, Banguela] tem o agradecimento [“no dia que eu tiver uma Les Paul, devolvo a tua”]. Sobre Josué de Castro, é uma das coisas mais equivocadas que tem por aí, quando se fala de Chico… Porque Chico não tinha lido, Chico não era muito de ler. Chico não tinha lido, não sabia nem que era Josué de Castro, e eu tenho impressão que ele fala Josué, Josué, e não cita o sobrenome, porque ele não lembrava do sobrenome. No livro tem a história de como é que ele fez a música, né? Que fala de Josué. Ele bota ele depois, porque naquela época eram muito raros os livros de Josué de Castro. Estavam todos fora de catálogo. Eu tinha, acho, que um, só, que era Homens e Caranguejos. Mas não tem nada meu, ali. Porque a gente tinha muito contato, assim, com Chico. Eu via muito Chico, mas nunca fui da intimidade dele.

5.⁠ ⁠Ainda estamos vivendo o Movimento Mangue?

A resposta é sim. A gente não está vivendo o Movimento Mangue, mas está vendo os efeitos, a sequela do Movimento Mangue, né? Porque antes do Movimento Mangue, a música pernambucana era meio marginalizada. Quer dizer, não tinha equipamentos bons, não tinha espaço, não tocava no rádio, não se fazia disco fácil. Então, quando a gente se comparava com aquelas bandas do BRock, dos anos 80, não dava nem pra comparar, né? Os caras dos anos 80, era tudo classe média alta, tinham uma puta instrumentação, tinham um esquema grande, porque as gravadoras estavam no auge, pra promover eles. Então, a música pernambucana que era feita nos anos 80 era marginalizada, era pouco ouvida, não se ouvia no Recife. E nem os produtores maiores davam abertura pra eles, pra abrir shows pra esse pessoal aí, e tal. Quando o Chico Science entrou, o BRock já estava enfraquecido e as gravadoras queriam uma coisa nova, e quando descobriram o Chico Science, Mundo Livre S/A e o movimento do Recife, caiu de monte aqui. O que se via de olheiro, diretor de gravadora, o diabo a quatro, aqui no Recife. E isso… O Recife era assim antes dos anos 70, né? Aí voltou aquela época, o Recife tornou-se um epicentro de um movimento musical, cultural… Não só musical, mas cultural, em geral, grande, e é até hoje. E isso foi deflagrado pelo Manguebeat.


Yellow é Luiz Eduardo Cerquinho Cajueiro, recifense, designer, programador, músico, Mestre em Ciências da Linguagem e parte da equipe Livronews.

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