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Letícia Malard (1936-2024): Uma vida dedicada à literatura e ao ensino

A literatura brasileira perdeu, no final de fevereiro, uma de suas vozes mais influentes e dedicadas. Letícia Malard, professora emérita da Faculdade de Letras da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), escritora e crítica literária, faleceu aos 88 anos. Nascida em Pirapora (MG), em 15 de novembro de 1936, Malard deixou um legado marcante não apenas como pesquisadora, mas também como mentora de gerações de estudantes e estudiosos da literatura.

Formada em Línguas Neolatinas pela UFMG em 1958, Letícia Malard iniciou sua carreira como professora de português, espanhol e inglês em colégios de Belo Horizonte, antes de ingressar no ensino superior. Sua trajetória acadêmica na UFMG começou nos anos 1970, onde se destacou por suas pesquisas pioneiras que conectavam literatura, política e história, sob a perspectiva da teoria marxista. Sua tese sobre Graciliano Ramos, defendida em 1972, já anunciava o rigor e a profundidade que marcariam sua obra.

Um de seus maiores feitos foi o resgate e a análise da obra de Avelino Fóscolo, autor do primeiro romance ambientado em Belo Horizonte, A capital (1903). Em Hoje tem espetáculo: Avelino Fóscolo e seu romance (1987), Malard não apenas revisitou a obra do autor, mas também contextualizou suas implicações históricas e sociais, contribuindo para reinseri-lo no cânone literário brasileiro.

Autora de livros fundamentais para o estudo da literatura, como No vasto mundo de Drummond (2005) e Literatura e dissidência política (2006), Malard também se aventurou pela ficção com obras como Divina dama (2013), um romance experimental que aborda a vida em uma favela imaginária, explorando temas como o tráfico de drogas e a marginalização social.

Letícia Malard era conhecida por sua generosidade intelectual e dedicação ao ensino. Colegas e ex-alunos lembram dela como uma professora apaixonada, sempre disposta a compartilhar conhecimento e a debater ideias. Além de sua atuação acadêmica, Malard foi uma presença constante na cena cultural mineira, participando de conferências, palestras e seminários. Sua contribuição como consultora editorial e parecerista para instituições como a UERJ, a UnB e a Fapemig também foi fundamental para o desenvolvimento da pesquisa literária no país.

“Letícia foi uma mulher múltipla, um poliedro humano, como se fala. Ela foi professora, tinha uma imensa vocação para a sala de aula, para a docência, formou gerações, era vocacionada para ensinar, para partilhar o que sabia. Foi uma excelente pesquisadora e uma notável crítica literária, deixou uma obra crítica importante, com estudos fundamentais sobre vários nomes da literatura brasileira, tais como Machado de Assis, Carlos Drummond de Andrade, Avelino Fóscolo e outros. Por último, foi romancista, ma ficcionista de talento, deixou dois romances importantes. Ela era muito generosa com os jovens escritores, lia originais, dava opiniões, estimulou a carreira de muita gente”, pontua o Rogério Faria Tavares, presidente emérito da Academia Mineira de Letras.

O professor José Américo Miranda, da Universidade Federal de Minas Gerais, era um grande amigo de Malard. Foi dele o texto de saudação a ela, quando do recebimento do título de professora emérita da UFMG, em 2002. Miranda cedeu ao Livronews o texto, reproduzido a seguir:



LETÍCIA MALARD, PROFESSORA EMÉRITA, por José Américo Miranda


Hoje tem espetáculo: Avelino Fóscolo e seu romance (1987), Ensino e literatura no 2º grau: problemas e perspectivas (1985), Escritos de literatura brasileira (1981), Ensaio de literatura brasileira: ideologia e realidade em Graciliano Ramos (1976): esses são os quatro livros que publicou a Professora Letícia Malard durante o tempo em que foi professora na Faculdade de Letras desta Universidade. Sobre esses títulos, o que me ocorre dizer é que são títulos singelos, que revelam com clareza o bisturi da inteligência precisa de sua autora.

            Hoje é dia de simplicidades afetadas: na minha posição, e pela natureza da circunstância, só me cabe a afetação de simplicidade. Fui designado pela Exma. Diretora desta Faculdade, Profa. Eliana Amarante, para, em nome da Congregação da Faculdade de Letras, dizer palavras à Profa. Letícia Malard. E haverão de ser palavras de louvor, como convém à circunstância e como exige o nosso reconhecimento de seu valor.

            Para uma situação como esta, prescrevem as regras que o orador se rebaixe com palavras, ou seja, por meio de seu próprio discurso – é esse o seu ofício. Com isso, fica elevada a maior altura a dignidade da pessoa saudada. Entretanto, neste caso, quis o destino que os fatos falassem pelas palavras: a escolha do orador, cujo discurso deve saudar a Professora Titular de Literatura Brasileira e, hoje, Professora Emérita, recaiu sobre a pessoa mais avessa a formalidades. E essa pessoa – eu, no caso –, numa hora dessas, para dar mais livre trânsito à sua admiração pela Profa. Letícia Malard, preferiria estar calada.

            E já que falamos de simplicidade, ocorrem-me palavras de Giácomo Leopardi, traduzidas ao português pelo nosso colega Rogério Muoio, professor de italiano: “É curioso ver – escreveu o autor italiano, na cidade de Florença, em maio de 1831 – [é curioso ver] que os homens [e, naturalmente, as mulheres] de muito mérito têm as maneiras mais simples, e as maneiras mais simples são sempre tomadas por indício de pouco mérito.”

            Ocorrem-me essas palavras, porque, como nos títulos das obras publicadas pela Profa. Letícia, creio ser a simplicidade de maneiras o mais forte atrativo de sua personalidade – simplicidade esta que se alia de tal modo a uma agudeza de inteligência que me fez recorrer (há pouco) à imagem do bisturi.

            Entre as alegações que apresentei a mim mesmo e que me levaram a aceitar esta empresa estava o fato de haver sido eu aluno da Profa. Letícia Malard no Colégio Estadual de Minas Gerais, no final da década de 1960, e, mais de vinte anos depois, no início dos anos 90, haver sido, já na condição de seu colega nesta instituição, orientado por ela na elaboração de minha tese de doutorado em Literatura Comparada.

            Eu diria que fazer uma saudação como a que me foi cometida é uma tarefa difícil e fácil – difícil por mim mesmo, fácil por ser quem é a Profa. Letícia Malard. A mim me faltam os recursos da retórica; nela, sobejam as qualidades que um exame objetivo, ainda que superficial e rápido, mostraria com eloquência.

            Vou-me referir a alguns acontecimentos de minha própria trajetória, para fazer ver algumas das qualidades a que me venho referindo. Aluno de escola pública, lá conheci a Profa. Letícia Malard. Por muitos anos (quase vinte) andei por outras áreas do conhecimento, até que ingressei no mestrado em Literatura Brasileira da Faculdade de Letras. Durante esses anos, não poucas vezes me recebeu a Professora em seu estreito gabinete do sétimo andar da Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, a Fafich, na rua Carangola – gabinete que ela partilhava, na época, com o Prof. Antônio Sérgio Bueno. Ela me recebia como se eu fosse ainda seu aluno, com uma atenção cuja motivação só hoje consigo entender.

            Durante esses anos, residindo no interior, não poucas vezes recebi cartões postais mandados de São Petersburgo, de Cuba, e não me lembro de onde mais. Quando ingressei no mestrado em Literatura Brasileira, foi a Profa. Letícia a minha orientadora. Devo dizer que a orientação não se concluiu; terminei meu mestrado sob a orientação da Profa. Eliana Muzzi. Não digo isso para compará-las: ambas me ajudaram, cada uma à sua maneira. Lembro esse fato apenas para fazer ressaltar aquilo que considero uma das maiores qualidades da professora, orientadora e amiga. Naquela ocasião, a Profa. Letícia afastou-se das atividades docentes para realizar a pesquisa e redigir a tese que lhe valeram o título de Professora Titular de Literatura Brasileira – e o livro sobre Avelino Fóscolo.

            Em se afastando, solicitou a professora ao colegiado do curso que providenciasse para mim outra orientadora. Que importância tem um fato desses? – posso perguntar. Respondo que tem a importância reveladora de um caráter: a Profa. Letícia sempre foi de uma correção admirável – em todos os aspectos de sua vida institucional, seu profissionalismo, seu desprendimento e sua seriedade eram exemplares. Mais tarde, já Professora Titular, recebeu-me ela como seu orientando no doutorado. Mas deixo de lado os fatos particulares e, principalmente, o passado.

            Encontramo-nos hoje em estado de alegria; é a nossa uma alegria pequena, dentro de uma alegria grande. A Faculdade de Letras da UFMG concede à Profa. Letícia Malard o título de Professora Emérita justo no momento em que o povo brasileiro se alça aos cumes da história, às altas esferas do poder político, ao plano das abstrações que o discurso da história transforma em realidades concretas e objetivas. E não creio seja fortuita essa circunstância: ela vem muito bem à ocasião e ao caso da Profa. Letícia Malard, pessoa ardorosa, vibrante, ágil, corajosa, esperta (no melhor sentido da palavra), que não se abateu quando a situação das liberdades no país era muito pior do que a atual, não desistiu da força de seu próprio pensamento, não abriu mão de ensinar Literatura Brasileira pelas palavras e textos do marxista Nelson Werneck Sodré, quando toda a comunidade se alheava das dores do presente pelo mergulho no debate estruturalista.

            Eu não tenho dúvidas: é de coragens semelhantes à da Profa. Letícia Malard – certamente houve outras por este país afora – que se tornou possível a realidade que hoje vivemos.

            O Estatuto e o Regimento desta Universidade preveem a outorga do grau acadêmico e do título honorífico de Professor Emérito, pelas Congregações das Unidades Acadêmicas, “aos professores aposentados, cujos serviços ao magistério e à pesquisa universitária foram considerados de excepcional relevância.” É esse o caso. É disso que se trata: esta ocasião significa o reconhecimento desta casa aos serviços prestados pela Profa. Letícia Malard.

            Recebendo hoje o título de Professora Emérita, a Profa. Letícia Malard passa de pretendente a pretendida. Todas as promoções que ela recebeu até hoje, recebeu-as porque lutou por elas, fez concursos, teve de eliminar concorrentes, teve de requerer, etc. Mas hoje ela recebe uma promoção que lhe é concedida sem que a tenha pleiteado. As outras promoções, os outros cargos, as outras dignidades que ela recebeu ao longo de sua carreira, recebeu-as porque as pleiteou, porque ela desejou a honra que o cargo, ou título, significava. Hoje, não. Hoje inverteram-se as posições. Não pretendeu a Profa. Letícia o título de Emérita, não o requereu, não o pediu, não o solicitou, não o quis. E não o requereu, não o pediu, não o solicitou, não o quis, porque não lhe competia o requerer, o pedir, o solicitar, o querer. Hoje, não. Hoje estão trocadas as coisas de lugar. Não é a Profa. Letícia que deseja a honra do cargo, do título; é o cargo, o título, que pretende a Professora. Não é a Professora que se quer ou se quis honrar pelo alcance de um título; mas é o título que se quer honrar pela pessoa dela; é a Faculdade de Letras que deseja entre os da casa as suas excelências [dela]. Mas os que a conhecem pessoalmente certamente hão de concordar comigo: contra as circunstâncias do momento, em que interessam as qualidades transcendentes da pessoa, é ela mesma a maior e a primeira de suas excelências.

            Encontramo-nos, pois, numa situação rara e difícil, da qual falou o Padre Vieira num de seus sermões. Estamos na situação de não pretender a pessoa o título, mas de o título pretender a pessoa. De acordo com o raciocínio de Vieira, são as razões deste modo de proceder o andar mais autorizado o título, o viver mais descansado o benemérito que o recebe, o ficarem mais livres e desembaraçados aqueles que indicaram a concessão do título, e, ainda, o ficar mais bem servida a instituição.

            Tenho e temos de reconhecer que vivemos um momento especial, pois a concessão do título de Professora Emérita a uma nossa colega não significa, para ela, propriamente, uma promoção funcional; não significa aumento de salário; não significa ganho concreto. Justamente por isso, tenho para mim que é a mais honrosa das promoções – porque é gratuita, porque é espontânea, porque deriva do reconhecimento, pela comunidade acadêmica, do valor profissional da Professora agraciada.

            Falo aqui pela instituição, quando por mim desejaria estar calado. Essa foi a difícil tarefa que me deram: a mesma boca tem de falar e calar. Calado, estou interiormente em atitude contemplativa, de admiração; falando, estou exteriormente em atividade, não posso saber como ando; calado, estou admirado e recompensado, por reconhecer nesta cerimônia a merecida homenagem a uma professora a quem sou muito grato por inúmeras razões; falando, sou porta-voz do reconhecimento institucional e da admiração de outros.

            Quisera não precisar dizer nada. Mas não me é possível. Estou engastado na instituição a que pertenço. Dentro de alguns minutos haverá a Profa. Letícia de nos dizer algumas palavras. Também ela não pode ficar calada. Para terminar, retorno a uma ideia que expressei há pouco: nossa alegria é pequena, é uma ilha dentro da alegria geral brasileira, que é maior. Mas dentro de nossa alegria há uma alegria menor ainda, que anda entre nós: Letícia.


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