No livro Vidas Matáveis em Cornélio Penna (Cepe Editora), o pesquisador Luiz Eduardo Andrade mergulha na obra do ficcionista modernista Cornélio Penna (1896-1958), elevando-o ao patamar de autor-intérprete do Brasil. A obra revisita os quatro romances de Penna — Fronteira (1935), Dois Romances de Nico Horta (1939), Repouso (1948) e A Menina Morta (1954) —, destacando como o autor fluminense questionou o patriarcado, a exploração do outro e os dramas familiares através de uma escrita que vai além do intimismo, revelando uma crítica profunda à sociedade brasileira. O título — já lançado no Recife e em Maceió — tem lançamento agora em Salvador, no dia 18 de março, a partir das 19h, na Livraria LDM do Shopping Bela Vista.
Cornélio Penna, muitas vezes visto como um escritor introspectivo e sombrio, é reinterpretado por Luiz Eduardo como um “escritor anfíbio”, termo cunhado por Silviano Santiago, que não se furtava ao debate político nem à experimentação artística. Suas narrativas, ambientadas entre os séculos XIX e XX, exploram núcleos familiares patriarcais em decadência, a escravidão e a vida no interior mineiro, expondo como corpos de mulheres e negros eram instrumentalizados para manter estruturas de poder. Para o pesquisador, Penna confronta visões idealizadas do Brasil, como as de Gilberto Freyre e Sérgio Buarque de Holanda, ao denunciar as violências e contradições da formação nacional.
Luiz Eduardo Andrade destaca que a morte é um signo central nos romances cornelianos, não apenas como fim da vida física, mas como exposição do vazio das estruturas de poder. A obra de Penna, segundo Andrade, desafia a ideia de um Brasil harmonioso, revelando as tensões e hierarquias que sustentaram a sociedade brasileira. O Livronews conversou com o autor sobre a obra, sobre Penna e sobre a atualidade do seu pensamento.
{L} O sofrimento íntimo é escondido na história do Brasil?
Luiz Eduardo Andrade – A vida em suas travessias não impede a dor. Viver é também passar pelas agruras. E muitas vezes, quando a gente vai contar a história da nossa vida, a gente tenta não dizer a parte da dor. Só que esse é o mal. Fizemos a nossa nação desse jeito. Olha, chegamos aqui, foi tudo bem, não houve nenhum problema, todo mundo nos aceitou, demos um espelho, trocamos figurinhas, tudo massa. Tá tudo indo bem, e não é. Há muito impensados para ser narrado ainda.
{L} Por que vidas matáveis?
Luiz Eduardo Andrade – A vida matável é aquela vida que pode ser e continua sendo morta, constantemente. Em tempo de hoje, fica subentendido que vem sempre outra vida para substituir e isso permanece. A vida se reveste de utilitarismo que mata o indivíduo. A ideia da capa, um inseto aprisionado, passa por essa dimensão. Ou seja, é uma vida que está ali sendo utilizada para ser explorada fisicamente em prol de finalidades alheias, mas cientificamente justificáveis.
{L} Como era o país, do ponto de vista ideológico, na época de Cornélio Penna?
Luiz Eduardo Andrade – Um país socialmente tenso e cheio de expectativas diante do mundo efervescente. Em matéria de literatura, imagino que dá para fazer comparações com hoje. Pode ter alguém que também seja pouco lido porque os interesses de leitura se modelam no tempo e aquilo que destoa tem dificuldade de recepção. Havia um movimento de denúncia, para mostrar os problemas do país e isso fez prevalecer uma visão socialmente mais explícita no texto. Não há dúvidas de que escritores como Graciliano Ramos, José Lins do Rego e Jorge Amado se mostravam afetados por esses interesses, inclusive com alinhamento com os comunistas da época. Já o grupo de Cornélio Penna era alinhado com a Igreja, muitos desses autores católicos, conservadores, que interferiu no olhar apressado de críticos da época, que não enxergou preocupação social nestes autores.
{L} Cornélio Penna pode ser visto como regionalista?
Luiz Eduardo Andrade – Depende. Enquanto movimento literário e alinhamento temático, é forçoso. Por outro lado, a prevalência de cenários interioranos, ou telúricos, como ligação com a terra e a narrativa de instituições arruinadas, sim, há muitos pontos de cruzamento com os regionalistas. Penso mesmo que a forma de escrever atinge um grau de profundidade, de adensamento que extrapola o regional e pensa questões outras, em cenários estranhos, com personagens raramente vistas na literatura da época.
{L} E qual seria a questão de Cornélio Penna?
Luiz Eduardo Andrade – Depois de ler, reler, percebi que tudo acaba em morte. Tudo morre na literatura de Cornélio. Resta pouco daquele Brasil bonito, tropical, verde, da natureza que foi recuperado na história da literatura. Não, não, não. Não tem isso. Tudo é mais escuro, denso. Quem morre? Morre a família toda. A vida que é promovida ali. Tudo está fadado ao fracasso. Porque, no fundo, aí eu penso com Walter Benjamim, enquanto vida, o que resta é a produção do cadáver. Acho que muito daquilo que a gente produz, enquanto ser vivo, parte desse lugar. A utopia do Cornélio não é acreditar que a morte é o fim. Mas que a morte é a forma para esvaziar de sentido as coisas.
{L} Qual a atualidade da literatura de Penna?
Luiz Eduardo Andrade – Nas obras, ele volta no tempo, mas só que ele está com 100 anos de diferença, 100 anos de distância. Então ele sabe o que aconteceu nesse percurso. E como se ele matasse lá, sabendo que naquele presente em que estava vivendo, o problema ainda era o mesmo. E está aí. Tanto é o mesmo que, observando o século 21, a gente está intensificando o debate sobre o lugar que as mulheres devem ocupar na sociedade, na política, na família, o direito que elas têm de dizer, o direito dos afrodescendentes de dizer, de acessar, de ter, de poder, de ser? São todos problemas mal resolvidos há muito tempo.