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Maria do Carmo Barreto Campello de Melo: O tempo contemplado

Por Peron Rios

Em artigo para o Livronews, o escritor e crítico literário Peron Rios, da Academia Pernambucana de Letras, trata da poeta Maria do Carmo Barreto Campello de Melo, falecida em 2008, que foi também integrante da APL e teria feito 100 anos em 2024.


A música do silêncio (1968), Verdevida (1976), Partitura Sem Som (1983) e Retrato Abstrato (1990) são alguns livros luminares da vasta obra verbal de Maria do Carmo Barreto Campello de Melo. É rememorando sua palavra ativa, plasmada pela poesia, que melhor celebraremos, no campo da cultura, o centenário de vida dessa autora tão generosa, em sua sensibilidade alerta.   

Em seus doze volumes de alta voltagem lírica, Maria do Carmo Campello versou a respeito da solidão e da natureza – em especial dos vegetais. Pela via poética, pôs a si mesma sob inquérito, interpretando o mundo como uma colisão entre a ordem cósmica e a desordem humana. Aliás, esse choque entre ordem e caos – afluentes a desaguar num estuário de angústia – constitui matéria vertente na linguagem da autora, felizmente em dissonância com certa poesia hegemônica de seu tempo, obstinada em reafirmar a “morte do autor” (sustentada pelo crítico francês Roland Barthes). Tal poesia, praticada por tantos, contentava-se em excluir de seu diâmetro a visceralidade humana, para contemplar sobretudo a linguagem num exercício quase de laboratório.

Na reflexão sobre o nosso estado solitário, Maria do Carmo buscou anteparos existenciais como a espiritualidade e a ideia de família  – duplo marco na busca de equilíbrio e de norteio. O poema “O autorretrato”, um quadro verbal, nos dá um claro exemplo do eu-lírico recorrendo ao lastro familiar para resistir às adversidades:

Aqui – meu território
(i)limitado ao norte e oeste
pelos ombros brancos do muro
e ao leste por um flamboyant que vomita vermelho […]
Aqui
meu território de ternura
aqui o chão
onde armei a tenda dos meus sonhos
e construí os alicerces
da minha solidão.

E é justamente pelas veredas de uma solidão essencial que a poeta ingressa no portal do tempo, em sua versão montaigniana. De fato, Montaigne retoma a noção de Chronos como fluxo veloz: “O meu eu de agora e o meu eu de outrora são na realidade dois” (Ensaios III, 9). Maria do Carmo Campello retoma a ideia poeticamente, elevando a expressão: “Já não somos aqueles/que o tempo encontrou ontem” (“Poema em solidão no. 4”). O poema se abre, diga-se de antemão, em diálogo implícito com o físico francês Michel Serres e com o notável crítico Antonio Candido. Escreve-nos a autora de Verdevida: “De tempo e dor/se tecem nossas fibras”. Ora, com o mesmo transferidor, o intelectual brasileiro rejeitava a equação amplamente aceita, segundo a qual “tempo é dinheiro”. Em resposta a essa monetização do que é medula, dizia Candido: o tempo, na verdade, é o tecido de que somos feitos. E Serres tonifica a ideia, lembrando que o nosso próprio corpo se perfaz de um acúmulo de tempos.  

Da poesia de Campello flagramos sua visão vital: no sofrimento, o acessório se desfaz e a essência prevalece; afinal, podemos concluir: se a vida é verde, a verdade é madura. Vários poemas de Maria do Carmo Barreto Campello delineiam um roteiro da matéria essencial, na fabricação de seu universo particular: pai e mãe, sol e semente, mar e lodo, vento e pétala. Em seus livros, concentra-se, além disso, uma iconografia sintomática: portas e janelas compõem a paisagem da escrita, onde pulsa um desejo pelas percepções abertas. Essa reoxigenação do sensível ocorre quando “a âncora” estanca o movimento veloz, permitindo-nos apreciar “o aroma do tempo” (Byung Chul-Han). Na literatura de Campello, no mundo plácido viaja, turbulento, o ser humano em sua entropia emocional. Flagramos, então, uma dissonância de timbre kantiano: o universo, em si, não guardaria melancolia alguma, senão pelo modo que, em nós e circunstancialmente, ele percute. Dizendo de outra forma, o “eu” é que prepararia, no caldeirão dos sentimentos, o distúrbio da harmonia cósmica:

[…] todas as coisas estão em paz e não se atormentam
e tranquilas restam como quem guarda um grande segredo
que as torna felizes.
E saber, Senhor, que só a minha angústia perambula e se
agita na grande paz da noite,
e é como um grito (ou um soluço) que desconcerta a noite
e toda a sua quietude. (“A Reconciliação”)

De fato, a visão de Campello acentua a dramaticidade da angústia humana, em contraste com a paz do lado de fora. Aqui, Maria do Carmo destoa do saudoso Mário Faustino, poeta convulsivo que, em homenagem ao poeta suicida Hart Crane, inverte os termos, mostrando o mundo feroz como ameaça permanente à pureza do espírito: “Não conseguiu firmar o nobre pacto/Entre os cosmos sangrento e a alma pura” (“Balada”).

Um sonoro verso livre – não raro com a toada de uma oração –, elaborado com força analógica, constitui o aparato formal dessa poesia que merece permanente visita. Suas imagens, fora do circuito da atenção cansada, algumas vezes até se avizinham do sopro surrealista – ratificado no recurso a combinações nominais improváveis. Um poema como “A Noite”, vazado em tom de prece, ilustra uma ocorrência inesperada do adjetivo:

Senhor,
se a noite for minha,
eu a tomarei como a um etéreo peixe
e repartirei sua carne translúcida
com os oprimidos,
os desencantados,
e os que têm sede e fome de ternura.

 Note-se que o termo “etéreo”, em vez de limitar (como querem certas gramáticas normativas), amplia o alcance do substantivo “peixe”. E o eco surrealista é reforçado, nesse caso, pela imago noturna, já anunciada no título do texto. O estranhamento da poesia de Campello nos retorce como interrogação, lançando na linguagem um referente esfumado, o qual, seguindo a senda mallarmaica, mais sugere que define (para Mallarmé, a palavra enunciada aprisiona o real, uma vez que dissolve o esforço imaginativo por parte do leitor). O procedimento se constata numa estrofe de “A Mãe”, em que a subversão de “flor de lis” em “flor de luz” gera, pela paronímia, uma surpresa, uma fratura na expectativa:

Teu nome não direi,
ó irmã do arco-íris,
mas só que ele nasce
como uma flor de luz
na minha boca.

Efetivamente, o eu-lírico não diz o nome  de seu interlocutor, apenas sugerindo-o com a luz da analogia. E esse “nome” celebrado eleva-se duplamente do chão, de um solo trivial: ao se fazer flor e ao incrementar essa mesma flor com a força luminosa que suspende os enigmas.

Em Campello, o que é abstrato se converte em plasticidade, sensorialidade palpável. No poema “O Filho do Homem”, o risco da fé cristã se converter em imagem vaporosa desfaz-se com a força concreta, visual, do sacrifício de Cristo: “E porque houve uma Janela/de braços crucificados/o Sonho foi possível”.  A cena da crucificação ganha, aqui,  um novo termo comparativo e um outro efeito semântico: de braços abertos, Cristo se assemelha à janela sacra, pela qual se irradia um horizonte ético inaugural; e por onde se pode escapar do inferno compacto da realidade.

A poesia sensorial de Maria do Carmo Barreto Campello incorpora a lição de Guimarães Rosa e Aristóteles. Para um e outro, o corpo sempre sabe antes da Razão, a respeito do mundo. Mas se um poema como “Os Passos” convoca os sentidos em sua vertente táctil (“O chão é duro e verdadeiro,/seu contacto é áspero”), a visualidade, na escrita de Campello, predomina – o que o mesmo texto já nos permite aferir: “Por baixo das calçadas, outra rua/jaz, amortalhada,/de sepultados passos […]// Por baixo do asfalto/estão meus sonhos/irrompendo em cicatrizes, nas calçadas”.

Com uma poesia repleta de janelas e contemplações (do mar ou da pintura),  a escritora ensina o sentido do olhar. Se no mencionado poema “A Noite” lemos que “Há veleiros dormindo no fundo dos meus olhos”, é porque navegam as retinas por amplidões temerárias; mas também porque, talvez, à semelhança dos mares, essas retinas sepultem náufragos dentro (à maneira do que se lê no “Epigrama no. 4”, de Cecília Meireles). Por outro lado, o verso permite compreender que os olhos, em estado de atenção, capturam até a beleza solitária dos veleiros. Quando tudo é deserto, restam as pupilas para avistar uma metrópole oculta, como se pode ler vivamente nos versos de “A Ponte”: “Eu estou vazia de mim mesma/E só possuo os meus olhos/Onde tua imagem fez morada”. Na obra poética de Campello, os olhos ganham o caráter incisivo sublinhado por Gaston Bachelard: quando agudo, o olhar penetra a epiderme das coisas e as surpreende em seu mistério. Por isso, Maria do Carmo nos atesta: “Nossos olhos têm muitas dimensões/e varam os seres” (“Os Sobreviventes”).

Dizia Francis Ponge que a poesia deveria guardar uma dobrada atenção: ao mundo e à linguagem. Daí Antonio Carlos Jobim exaltar o valor da visão alerta, flagrante na letra de seu parceiro Chico Buarque: “E olha o sol/Da manhã/Olha a chuva/Olha a chuva, olha o sol, olha o dia a lançar/Serpentinas […]” (“Imagina”). Para o compositor de “Wave”, era preciso recuperar o hábito antigo de contemplar as coisas, caso contrário a vida se faria ainda mais difíicil. Não é por outra razão que Manuel Bandeira fitava o real no revés da pressa futurista: a contemplação deve ser esculpida na demora. A poeta paulista Mariana Ianelli escreveu um poema que aponta a importância dos olhos agirem magnéticos, puxando as riquezas que se querem vislumbradas:

Que estejam vivos em algum lugar
Os teus olhos –
Não importa onde se demorem,
Que coisas afaguem, que outras molestem,
Importa que estejam vivos e curiosos
Esses olhos
[…]
Que dessa multidão, desse rubor de sumo
E segredo de floresta
Se encham os teus olhos,
E só então se esfumem, e só então se fechem. (“Teus olhos”)

Enfim, aproveitando a imagem ocular do texto, pode-se dizer que, frente à necessidade urgente de se lançarem âncoras, a poesia de Campello se vê contemplada e, por tal razão, envia uma piscadela cúmplice à exortação de Mariana Ianelli.  


Peron Rios é escritor, professor e crítico literário. Membro da Academia Pernambucana de Letras.

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