Artigo por José Castilho
Com muita tristeza recebi essa notícia que abre um leque de dimensões ao ser lida/sentida. Marina foi um colosso, no sentido de sua dimensão intelectual e humana descomunais, tanto no Brasil quanto no mundo ibero-americano, onde semeou em corações e mentes de todas as idades, etnias e credos, uma literatura de profunda busca e de identidade com a alma humana. Falava e escrevia para todos nós e tive a felicidade de conviver com essas falas e escritas inúmeras vezes nos muitos encontros que compartilhamos em feiras, festas, seminários e encontros onde o livro, a leitura e a literatura tiveram vez e voz.
Sendo seu leitor há muitos anos, somente a conheci pessoalmente numa das Feiras do Livro de Frankfurt, Alemanha, nos anos 90. Começou quase como uma visão entre cinematográfica e literária, surgida, de repente, naqueles imensos corredores que interligam os pavilhões. Notei, ao longe, um casal andando apressado, braços dados, capas de chuva esvoaçantes, visivelmente felizes, que vinham em minha direção. Eram Affonso Romano de Sant’Anna e Marina Colasanti. Em raríssimo momento de tietagem, hábito que não cultivo por timidez ou por não querer impor uma presença desconhecida, interrompi a caminhada deles e me apresentei dizendo de minha admiração. O carinho recebido de ambos foi um preâmbulo de uma amizade sempre pontual, marcada por encontros frequentes de trabalho muito intensificados à época do Ano Ibero-americano da Leitura, o nosso Vivaleitura de 2005, e do primeiro Plano Nacional do Livro e Leitura/PNLL de 2006. Sem exceção, tê-los separadamente ou em dupla nas conversas e reflexões sobre a política pública de formação de leitores/as, as bibliotecas, a mediação, a centralidade literatura, me trouxeram alentos e inspirações inesquecíveis.
Hoje, ainda às volta com tantas barbáries contemporâneas que desprezam o pensamento crítico, a formação clássica, o prestígio aos estudos, à fabulação, à ciência, aos conceitos fundamentais e as boas práticas, a morte de Marina é lamentável porque é mais uma corajosa e preparada defensora de um mundo baseado na razão e na sensibilidade que se vai. Com sua partida perdemos uma valorosa guerreira para avançarmos a patamares melhores de convivência nessa difícil polis brasileira e latino-americana. Não pensem que exagero ou faço um elogio gratuito, quem a viu em debates na defesa de suas posições conheceu sua contundente sinceridade e elegante firmeza.
Um filme desses momentos de lições e partilhas me passa pela memória e separo aqui para compartilhar com vocês os nossos últimos encontros presenciais em público, no já distante 2019, onde a encontrei em duas grandes ocasiões.
A importantíssima Feira Internacional do Livro de Guadalajara, México, fez a ela uma homenagem em 2019 com um colóquio em seu grande salão de conferências e eu tive a honra e o prazer de apresentá-la, como se isso fosse necessário frente a um auditório lotado em torno de mil pessoas de todas as idades gritando: “Marina”, “Marina”! Como em outras vezes em que a vi com seu público leitor, ela navegou, na exposição de um texto maravilhoso e no debate que se seguiu, com a leveza e a serenidade de sua figura profunda, contundente como mulher, como escritora, como defensora incondicional das liberdades, identificando-se e alertando para as armadilhas do mundo.
Certamente foi com ela que agucei meus radares contra as sutilezas das linguagens e das armadilhas machistas das escritas discriminatórias sobre a mulher. Ela nos deu lições memoráveis e a ouvi contestando amigos/as com contundência, desmontando fábulas e textos que sutilmente rebaixavam o feminino.
Essa mesma sensação de que ela navegava com seu público, sempre com seu porte pleno de elegância e feminilidade, qualidade que Affonso, seu companheiro de vida, mencionava em nossas conversas, nunca a impediu da magia da descontração e de se fazer à vontade em encontros de grandes públicos, como o que também compartilhamos na Bienal do Livro do Rio de Janeiro em 2019 no estande da Secretaria de Cultura junto com a Rede Nacional de Bibliotecas Comunitárias e os amigos/as da Baixada Fluminense.

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Os dois encontros de 2019, México e Brasil , com a mesma navegar criando empatias, identidades, criatividades surgidas do profundo conhecimento e convívio contínuo com os meninos e meninas, os adultos velhos ou novos que eram seus leitores e leitoras. O que me parecia é que a menina nascida na Eritréia, educada classicamente na Europa e depois aportada muito jovem no Rio de Janeiro, atingiu o patamar sublime de quem se comunica com a humanidade, aquela que muitos insistem em esquecer nesses duros tempos de tentativas de nova ascensão da extrema direita no mundo contemporâneo.
A felicidade de encontrá-la, assim como a Affonso, será agora somente nos escritos e nas lembranças, com a incômoda sensação que o melhor do mundo em que já vivi está indo embora. Tudo isso deixa nosso coração apertado e a certeza de que seria muito melhor se a tivéssemos viva. Mas se a finitude é inevitável, a memória e o exemplo de uma vida como a dela nos impulsionam a continuar buscando o melhor que há em nós. Viva Marina Colasanti!
São Paulo, 31/1/2025.

*José Castilho é Doutor em Filosofia pela USP e professor da UNESP. Autor, editor, gestor público. Atua na www.jcastilhoconsultoria.com.br e é consultor internacional. Ex-presidente da Editora Unesp, foi Secretário Executivo do PNLL, Diretor da BMA-SP e Presidente da ABEU e EULAC. Seu nome apelida a Lei 13696/2018 da PNLE.