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O Butragueño do Nordeste de Amaralina

Por Roberto Azoubel

Foto por Ana Rosa Marques

Tá pensando que tudo é futebol? – Reminiscências & Contradições. É com essa nova seleção de crônicas, cujo título é um verso da música “Vagabundo não é fácil” dos Novos Baianos, que sobe novamente ao ataque o craque Franciel Cruz, também conhecido como o Butragueño do Nordeste de Amaralina. Sete anos após encantar seus torcedores, digo seus leitores, com Ingresia, um timaço de textos do mesmo gênero que funcionam como uma espécie de guia prático e sentimental da cidade de Salvador, o jornalista-cronista-peladeiro natural de Irecê agora aponta seus chutes certeiros tendo o esporte bretão como mote. Mas engana-se, como o próprio título já indica, que Franciel tabela apenas com o futebol. Qual um Garrincha na arte da escrita, o “Butra” baiano faz que vai para um lado e vai para outro. O ludopédio é só uma jogada de efeito para fintar os leitores na intenção de revelar os dribles e as quixotadas da existência. Pois Seu Françuel sabe, como ótimo cronista que é, que “só o que se narra vale a mágica da vida” (palavras do próprio autor). Sem fazer cera, passo a bola pro camisa 10 da boa terra, que estará lançando seu novo petardo no dia 15 de junho, às 15h, no Orora Bar de Esquina, distinta freguesia da rua mais bonita do Recife.

Capa/Divulgação

Antes de chegarmos ao novo livro, será interessante os leitores conhecerem um pouco da trajetória do “menino insubmisso do sertão de Irecê”, conforme lhe definiu o jornalista Claudio Leal no prefácio de Ingresia. Como se deu essa passagem do interior baiano para Salvador, a escolha pelo jornalismo e as experiências com a literatura?

Franciel Cruz – A passagem é uma fuga e, concomitantemente, por mais paradoxal que possa parecer, uma permanência. Saí de casa para tentar me livrar da mão pesada do meu pai, que era da época do carrancismo. Porém, o Sertão não saiu de mim, inclusive do ponto de vista literário. Tudo o que escrevo, de algum modo, tá ligado ao que aprendi com os cantadores das feiras livres, uma espécie de amor à cacofonia e à mistura de histórias fabulosas com situações do cotidiano. Já a escolha pelo jornalismo, ingenuamente, se deu pela necessidade de buscar/fazer justiça.

A primeira vez que tomei contato com uma crônica de sua autoria foi em meados da década 00, através do site O Carapuceiro, que era capitaneado pelo jornalista e também cronista Xico Sá. Era uma época em que a Internet sofreu uma avalanche da produção cronística brasileira com velhos e novos autores publicando muitos textos em sites e blogs. É desse mesmo período o Blônicas, que tinha um timaço com o próprio Xico Sá, Leo Jaime, Antonio Prata, Marcelino Freire, entre outros; O Sopa de Tamanco, do Geneton Moraes Neto; o Ao mirante, Nelson!, do publicitário Nelson Moraes; o Marconi Leal; enfim, um número enorme de espaços dedicados ao gênero. É nesse momento que você se descobre cronista? Como se deu a sua relação com esse formato textual que se acomodou tão bem no nosso país?

Franciel Cruz – Um pouco antes das febres dos blogs, eu enchia os pacovás dos amigos mandando, via e-mail, textos e outras impertinências. Um deles, Gil Maciel, que, inclusive, fez o projeto gráfico do livro novo, se cansou e criou o blog e me mandou já com senha e algumas de minhas prosopopeias já publicadas. Dei continuidade. Além disso, publiquei no O Carapuceiro de Xico, que escreveu a orelha do primeiro livro, Ingresia. Com Marconi Leal e Geneton brincamos de tuitar antes da existência do Twitter (poderíamos estar no governo dos EUA no lugar de Musk, mas enfim, não tivemos tino pro negócio). Nelson Moraes é um querido e até hoje nos falamos. Enfim, foi um momento bacana de diálogo sem estarmos presos, ainda, aos ditames das big techs. Mas o interesse pela crônica surge a partir da leitura dos clássicos brasileiros e, especialmente, de um monstro baiano pouco (re)conhecido: Jehová de Carvalho.

É opinião corrente que a força das tais redes sociais, que eclodem logo em seguida a esse momento, terminou por solapar essa produção cronística. Você também concorda com esse diagnóstico?

Franciel Cruz – De certo modo, sim. Naquele momento inicial, existia esta rede de contato. Ao lado de cada blog, havia uma lista de indicações de outros, que acabavam por formar uma rede em constante movimento e ampliação. Depois, o que parecia liberdade se mostrou aprisionamento. Óbvio que agora surgem novas plataformas que, muito provavelmente, serão devoradas, não de modo antropofágico – como tudo que envolve a produção capitalista. É como se os capitalistas nos dessem o doce. Então, quando a gente começa a se lambuzar e gostar do mel, eles cobram o preço. Ou, pra usar outra imagem, o capitalismo deixa a fresta, nos concede a fresta e depois arrombam nossa porta.

Há um intervalo de sete anos entre Ingresia e Tá pensando que tudo é futebol?. Ambos são livros de crônicas, no entanto, há um recorte temático que diferencia os dois. Enquanto no primeiro você realiza uma espécie de antropologia soteropolitana, contando “causos” e aspectos variados e divertidíssimos da cidade de Salvador, o segundo toma o futebol como leitmotiv de suas reminiscências. Conte-nos sobre essa distância entre as publicações e o processo de construção deste último trabalho.

Franciel Cruz – Então, este interregno (gostou do interregno, meu filho?) ocorreu por alguns fatores. O primeiro é que estive dedicado, absorto, na construção de um roteiro para uma série sobre a anistia. O outro fator, não menos importante, é que acabei perdendo todo o material deste novo livro e fui obrigado a respirar e reescrevê-lo. Gosto de dizer que o leitor acabou ganhando, pois a ideia original era bem pretensiosa, misturar futebol & carnaval enquanto elementos constitutivos de nossa moderna tradição. Com a perda, acabei decidindo falar apenas sobre minhas reminiscências e contradições futebolísticas. Agora, tô me guardando pra quando o carnaval chegar.

Somos contemporâneos, nascidos ali na virada dos anos 1960 para os 70, e talvez da última geração que tenha bebido desse sonho modernista (na verdade, um residual romântico) de criação de uma identidade nacional. De forma evidente – e você acaba de confidenciar isso – tal imaginário atravessa a sua produção literária. Há alguma preocupação na sua escrita em não soar datável como aquele conhecido  tio do famoso refrigerante? Além dessa vivência geracional, o que mais alimenta as suas crônicas?

Franciel Cruz – Então, num posso ser moderno, por motivo de: sou modesto e quero ser eterno. O que alimenta minhas crônicas é meu alimento diário, as ruas. Não consigo conceber a escrita afastada da vivência, do quente, do cotidiano, da labuta. Pode-se lambuzar com um naco de erudição, mas se não tiver o diálogo com as pessoas, creio que não rola. E o diálogo, ou a tentativa de, é algo universal.

De fato, na leitura de Ingresia as ruas de Salvador nos chegam “lambuzadas de dendê” – uso uma expressão bem ao gosto do autor. Em Tá pensando que tudo é futebol? elas também estão presentes, mas de outra maneira. As ruas são os caminhos para um terreno baldio onde acontecerá uma pelada (um baba em soteropolitês), são os arredores dos estádios de futebol, enfim, elas estão sempre a serviço da bola. Você não tem receio que esse recorte temático do novo livro recorte também a amplitude do seu público leitor?

Franciel Cruz – Quando estava escrevendo pensei muito sobre a seguinte questão. Este é um livro para quem é fanático pelo futebol ou é um livro para quem gosta da vida lambuzada de bola? Acho que terminei optando por este caminho, talvez por uma espécie de ódio eterno ao futebol moderno, este em que muitos jogadores se preocupam mais em quantas vezes vão aparecer no telão do que executar um drible, convidar ao baile. Assim, tentei fugir disso e também dos torcedores que estão encantados por este zeitgeist. Quanto à amplitude do público, até agora tô surpreendido positivamente.

Já que você mencionou acima o carnaval, há uma bela passagem na crônica Eu e Popó; Popó e eu, desse novo livro, que evoca um elemento momesco. Aspas para o maestro: “Mais do que aceitável, é recomendável, imperativo categórico, vestir o manto sagrado da fantasia para que se possa suportar e driblar a aridez cotidiana, este fardo que nos empurra para a ribanceira da sensatez”. A receita está aí, mas, noves fora a loucura de torcer pelo Esporte Clube Vitória, personagem mais importante do livro, quais os ingredientes que você utiliza, no seu dia a dia, para enfrentar, como diria Nelson Rodrigues, os “idiotas da objetividade”?

Franciel Cruz – Eta porra, agora você me apertou sem me abraçar. Vamos lá. É extremamente complicado amar e viver o futebol hodiernamente (gostou do hodiernamente, meu filho) quando as pessoas, e aqui digo especialmente boa parte da torcida, se preocupam mais com cifras do que com a possibilidade de um drible, duma mágica, duma fantasia, de vivenciar a loucura que é estar num estádio. Então, creio que busco o caminho da radicalização, cada vez mais. É uma forma, mesmo que frágil, de tentar contrabalançar.

Em relação ao futebol, parece que você tem “lugar de fala”, pelo menos é o que testemunha, no ótimo prefácio de Tá pensando que tudo é futebol?, o advogado André Dantas, que lhe acompanhou numa pelada em Lauro de Freitas. No entanto, para finalizarmos, volto ao carnaval: qual a posição que Franciel Cruz melhor evolui nos dias de Momo?

Franciel Cruz – Atrás do trio elétrico. Afinal, conforme já sentenciou a Vedete de Santo Amaro, lá só não vai quem é pernambucano.

Como diriam os próprios soteropolitanos, “lá ele”!

*Roberto Azoubel é doutor pelo Programa de Literatura, Cultura e Contemporaneidade do Depto de Letras da PUC-Rio e membro do Conselho Editorial da CEPE.

Serviço:

Lançamento de Tá pensando que tudo é futebol? – Reminiscências & Contradições, livro de Franciel Cruz.

Quando: dia 15/06 as 15h00.

Onde: Orora Bar de Esquina (Rua da Aurora, 1139 – Santo Amaro, Recife – PE)

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