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“O impostor cotidiano”: psicanalista Hugo César explora identidade e humor na adolescência em livro de estreia

A adolescência é um terreno fértil para contradições: um período de descobertas, frustrações e tentativas de se encaixar em um mundo que muitas vezes parece hostil. É sobre essa fase — e suas pequenas tragédias cotidianas — que o psicanalista e escritor Hugo César reflete em O impostor cotidiano, seu livro de estreia publicado pela Editora LiteraturaBr. A obra, que flerta com a autoficção e o humor ácido, será lançada no próximo domingo (30 de março), às 11h, na Livres — Livraria do Mercado, em Belo Horizonte.

Com orelha assinada pelo premiado Jacques Fux e posfácio da imortal da Academia Mineira de Letras Ana Cecília Carvalho, o livro mergulha na história de Rhugo, um adolescente que oscila entre o exagero e o desencanto enquanto tenta encontrar seu lugar no mundo. A narrativa questiona não apenas as máscaras que vestimos na juventude, mas também a própria natureza da identidade — tema que Hugo César explora com ironia e uma pitada de autocrítica.

Em entrevista exclusiva ao Livronews, o autor revela como sua formação em psicanálise influenciou a escrita e discute a linha tênue entre ficção e autobiografia. “Toda a história da literatura está baseada nas experiências dos autores”, afirma Hugo, citando Philip Roth e Milan Kundera como referências. Ele também reflete sobre o papel do humor ao abordar temas densos, como o sentimento de exclusão: “Olhando para trás, a adolescência é uma tragédia engraçada”.

A obra dialoga ainda com a tradição da novela latino-americana, inspirando-se em autores como César Aira e Roberto Bolaño para construir uma narrativa ágil e metalinguística. Para Hugo, a impostura não é um defeito, mas parte essencial da construção de quem somos: “Não acredito em um Eu coeso, que tem um carimbo autenticando sua essência”. Confira a seguir a entrevista completa, em que o autor fala sobre literatura, psicanálise e as pequenas mentiras que contamos a nós mesmos.


O livro flerta com a autoficção e reflete sobre a construção da identidade. Até que ponto a narrativa do protagonista é inspirada em suas próprias vivências? Como você equilibra a linha entre a ficção e a autobiografia?

Toda a história da literatura está baseada nas experiências dos próprios autores. Seja a experiência que eles vivem na imaginação, seja no trabalho com a memória. E mesmo nestes casos, não existe escrita sem invenção. Eu morei 11 meses na Alemanha, minha avó me benzeu com água benta romana – um souvenir do Vaticano — e eu deixei cair o creme do café na calça do meu uniforme. Parodiando o Manoel de Barros, dez por cento do que foi escrito é verdade. O Philip Roth gostava de explicar a diferença entre ele e seus alter-egos da seguinte forma: primeiro ele pensava no que ele, Philip Roth, faria na situação em que o personagem se encontrava, então ele escrevia o oposto. No livro “Os fatos – autobiografia de um romancista” há uma troca de cartas hilária entre Philip Roth e Nathan Zuckermann. Detalhe, o Nathan é um dos alter-egos de outros livros do Roth. Mas e o Philip Roth do livro “Os fatos”, seria ele real?

Você menciona que a adolescência é uma “tragédia engraçada” e que o desencanto é um tema central na obra. Como você utiliza o humor para abordar temas tão densos, como a busca por pertencimento e a frustração inerente ao desejo?

Olhando para trás, é claro. Pode ser que eu esteja exagerando em chamar de tragédia. Segundo a minha irmã, eu tenho uma tendência a “criar caso” onde não tem nada, a romantizar a vida, a exagerar nos afetos. Ela acha que é um defeito. Pode ser que seja, mas eu gosto desse defeito. O Ariano Suassuna dizia que tudo que é ruim de passar é bom de contar. Se fosse escrever as situações dando ênfase no aspecto trágico, acho que poderia pesar a mão e ficar um texto chato. O humor entra como aquela piscada de olho numa fala séria. Uma vez uma paciente me disse: já que ela não conseguia se desfazer do sintoma, pelo menos ela aprendeu a se divertir e rir dele. Acho que essa é uma saída honesta. Um dos escritores mais engraçados em toda sua seriedade é o Milan Kundera. É uma pena ele não ter conhecido o Machado de Assis (que sabia nos fazer rir de nervoso), eles teriam ótimas conversas sobre a arte de divagar do Tristam Shandy. No livro “A brincadeira”, o Milan Kundera enfatiza que o humor é destruído nos regimes totalitários, pois eles se levam muito a sério. Nesses regimes, ninguém pode se questionar sobre o pertencimento. Existe um paradoxo na adolescência, você quer pertencer, mas você quer pertencer a uma comunidade em que sua individualidade faz sentido.

Você cita autores como Philip Roth, Karl Ove Knausgård e Ricardo Lísias como influências. De que forma esses autores impactaram sua escrita? E como você dialoga com a tradição da novela latino-americana, especialmente com autores como César Aira e Roberto Bolaño?

Quando eu li “Divórcio”, do Ricardo Lísias, eu senti muita estranheza. O livro é de 2012, naquela época autoficção ainda não era um termo tão popular no mercado literário. Era tão difícil separar a obra do autor que o Ricardo foi acusado de expor o diário da ex-esposa (diário que ele inventou). Eu gosto dessa estranheza. Me parece que ela cria uma tensão semelhante àquela vivida pelo Raul Seixas, que sonhou que era uma borboleta — de vez em quando é bom se perguntar se você é você, ou um sábio chinês. Eu conheci a literatura do Philip Roth por indicação do meu analista. O livro sugerido foi o “Patrimônio – uma história real”. Não é o meu preferido dele. Gosto mais do “Avesso da vida”. Neste, o autor cria três narrativas diferentes para o destino do Nathan Zuckerman. Cada narrativa desconstrói a anterior e enriquece um pouco a história geral que ele está contando. Da série de livros em que os personagens se chamam Philip (e estão tensionando os limites da ficção), meu preferido é “Mentiras”… Durante um ano e pouco, eu frequentei o ateliê de escrita do Estratégias Narrativas, que é um espaço muito legal da escritora Laura Cohen em Belo Horizonte. A Laura tem uma escuta muito boa e ela propunha exercícios a partir do material que a gente levava. Uma das propostas foi mimetizar o estilo do Karl Ove. Isso foi importante para uma torção que faço no meu livro. No quarto livro da série “Minha Luta”, o Karl Ove Knausgard  não se leva tão a sério. Nem parece um norueguês. Dos que li, na época, era meu preferido. O final dele é subversivo para um adolescente que fica fantasiando como seria a noite perfeita para perder a virgindade. Pra mim o melhor Bolaño é o do Javier Cercas, que aparece no último capítulo de “Soldados de Salamina”. O Bolaño leitor, que lê até papel caído na rua. Com esse eu me identifico mais. Do César Aira eu gosto muito do termo noveletas. Pra abrasileirar, chamei O impostor cotidiano de novelinha. Tem uma certa nonchalance. O César Aira frequentou o mundo punk e gay da década de 80. Não o autor, mas, sim, o personagem do livro “A prova”.  É assim que esses autores vão me influenciando.

O livro explora a ideia de ser um “impostor” no cotidiano. Como você vê a relação entre a impostura e a construção da identidade, tanto na adolescência quanto na vida adulta? Acha que todos nós, em algum momento, somos impostores de nós mesmos?

Eu não acredito em um Eu coeso, que tem um carimbo autenticando sua essência. Não tenho certeza se somos impostores de nós mesmos, mas certamente nos sentimos assim em muitos momentos. Há muita tensão na construção de uma identidade. E ela nunca é definitiva, não existe algo como “acabou a adolescência, tô pronto”.  Não mesmo. O tensiosamento pode ser externo (sociedade, cultura, família… pode elencar, aqui, todas as instituições que quiser), mas também interno. Há muitos anos, li uma tirinha em que o artista explicava as diferentes formas de conflito narrativo (personagem X natureza, personagem X sociedade, personagem X máquina etc). O conflito do início deste século era personagem X autor — um estímulo importante na escrita do meu livro. Esses conflitos narrativos são conflitos que vivemos cotidianamente na construção da nossa identidade.

Como psicanalista, como sua formação influenciou a escrita do livro? Você acredita que a psicanálise oferece ferramentas para explorar temas como memória, identidade e a narrativa de si mesmo?

É um lugar comum da Psicanálise: o Eu não é senhor em sua própria casa. O homem é um ser dividido internamente. Isso é a base do conflito que mencionei na resposta anterior. A Psicanálise dá forma à minha leitura do mundo.Quando eu estava na graduação, o professor Paulo César Carvalho publicou um livro sobre a estruturação do aparelho psíquico a partir da imitação (dos pais). Recentemente me interessei pelo conceito de imitação na obra do René Girard. Tenho tentado aproximar os dois, Paulo e René. Vamos ver se conversam.

Nesses dias, muito tem se falado sobre a série Adolescência do Netflix, das questões envolvendo o uso de redes sociais pelos jovens. Como tua experiência na psicanálise, te faz olhar para esse momento?

Não acho que a adolescência hoje seja mais complicada do que a de ontem. Nesse assunto, ainda não fiz minha carteirinha de sócio do clube dos velhos que ficam reclamando que o passado (quando éramos jovens) é que era bom. Hoje é mais fácil encontrar pessoas que pensam como você. Isso tem um lado positivo, não perde tanto tempo frequentando grupos em que você tem que fingir ser outra pessoa. Por outro lado, como fazer a comunidade em que me encaixo respeitar a individualidade de quem pensa diferente? O mais comum é fortalecimento do grupo eliminar a risada si próprio.

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